sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dos amores


Por Silvia Badim e Renata Penna
Ilustração de Ana Vasconcellos




Eu achava que amar tinha a ver com certezas. Eu estava errada, amar é não ter certeza nenhuma de coisa nenhuma. É andar na corda bamba de olhos fechados, sem rede de proteção para suavizar o tombo. Eu achava que quando a gente ama, tem segurança e tranquilidade, mas não. Até que tem leveza e paz, mas é uma paz feita de tempestade, uma paz toda colorida e intensa feito olho de furacão. Eu queria encontrar nesse amor que eu esperei a vida toda um sono tranquilo sem pesadelos, mas quando ele veio eu descobri que o sentimento verdadeiro é assim, sobressalto. É de susto que ele se alimenta, é de reviramento que se faz um amor de verdade, senão é quererzinho besta que por qualquer coisa se esvai, amor de verdade não. E eu, que achava que no dia em que eu encontrasse o tal que tanto se fala, teria todas as respostas, agora eu sei. Eu sei que quando se ama se encontra novas perguntas e novas coisas pra se pensar e novos caminhos e novas delícias boas de experimentar. E eu sei que o amor pode doer também. E eu sei que é bom, mesmo na dor. E eu sei que não precisa ser arrumadinho nem perfeito nem cor de rosa porque não é pra ser. E agora eu sei que não é que a gente se misture nem deixe de ser o que é para estar com o outro, é outra coisa, é aprender a caminhar solitário, mas de mãos dadas. 

E é por isso tudo que hoje eu sei que eu amo. É, eu amo você, eu posso dizer, deixo vir ao mundo essa frase tão difícil que agora sai assim tão fácil, que escorrega pela língua, que é tão óbvia e boa de falar, desse jeito mesmo, clara e repetidamente. E é tão bonita essa profusão toda de sentires, é bonito esse amor que invade assim, sem rumo certo, sem resposta ou cama esticadinha. A gente se encontra é aqui na beira desse mar imenso, revolto, de ondas grandes e volumosas. Esse mar salgado que quando a gente pisa e arrepia é também feito de vento calmo e águas plácidas, de estrelas coloridas e lua cheia refletida no escuro. Porque é assim, é calmo e é revolto, é intensidade e mansidão, é assim quando é real e é preciso coragem para se querer aquilo que se é, para se querer os contraditórios que vem com essa força toda, para enfrentar a si próprio refletido nos olhos do outro. Coragem de querer mais e querer sempre, para olhar profundamente e mergulhar nos olhos  sem porto de chegada, para querer fazer da vida um lugar mais bonito só para poder acolher o outro. Coragem para beijar as fragilidades que pingam em lágrimas insensatas, para soprar bem forte as nuvens carregadas, para suspirar como tola a cada gesto de carinho e a cada descoberta de caminho conjunto. 

Porque amar é também essa coragem toda, é ousadia querer fazer casa, de construir mais e melhor, de querer montar o futuro mesmo sabendo que o futuro é miragem e aposta, é ingenuidade boa de querer que o outro nunca mais vá embora. E é também essa dor toda, essa dor dialética, a dor que permeia tudo que é grande, a dor de se saber finito diante do universo das estrelas, de se saber pequeno diante do vôo cego de mãos dadas, de saber tudo e não saber nada, de sentir de olhos vedados e desistir de colocar os óculos. 
E aqui então eu enterro todas as pequenas certezas e de dentro da minha solidão planto as minhas mãos nas suas. Com os pés descalços no chão de terra reverencio a grande e única certeza de estar ao seu lado pulando nesse abismo nosso que gela os ossos, de estar nua e cheia de medo bom, de estar cavalgando sem cela e de, sobretudo, estar viva, experimentando essa vida que faz sentido porque você me testemunha, porque você me olha e me adentra as células, porque a gente se mistura e se guarda em conchas separadas, porque tudo faz sentido mesmo quando não conseguimos enxergar sentido algum. 

E é nesse lugar mesmo que eu quero ficar, é aqui nesse turbilhão que eu continuo falando de amor, que eu pego os lápis para colorir a quatro mãos essas tantas páginas em branco que estão por vir. Porque aqui é onde amanhece com sol, é onde a luz brilha no horizonte, é onde os pássaros cantam e a mágica acontece. E eu quero a mágica.  



terça-feira, 19 de junho de 2012

A Morte do Touro


Corpos que se esfregam para fazer o amor sair pelos poros. Corpos cansados, exaustos no riso e no gozo. Bocas, línguas, falos. Um encontro que já é despedida.

Medo de perder o que já foi conquistado, medo de ser devorado nas garras do dragão do prazer. Olhar para todos os lados e ver os presentes pelos deuses ofertados: o filho que corre pelo quintal, o amado que acolhe as lágrimas que nunca saberá por que chorada. Choro que lamenta a perda do que nunca lhe pertenceu.

Na escura noite fria dos pensamentos, insônia como no primeiro dia. Agora o fogo que queima e parte, deixando o frio do vazio. Não é uma rejeição. Mas me sinto menina nesta hora, a mesma deixada no berçário, a esquecida pela mãe, a esquisita da escola.

Sobre o touro, na beira do rio, retirar a faca da bainha e cortar o animal que me carrega. Comer a carne crua, beber o sangue quente, colocar para digerir o que se sente. Calar o impulso, de novo e outra vez, colocando-o a trabalhar para mover meu corpo, sem ser carregada por ele.

Quero fechar as portas, trancar os portões, dizer que nada aconteceu, voltar no tempo e não aceitar o convite. Negar a transformação. Como cantou o poetinha: “se foi para desfazer porque é que fez”?

Minha vida, talvez seja como meu parto, rápido, intenso, sagrado e profano; mítico e carnal. Quando começou já era o fim. Era o que eu daria conta. O exato tempo. Nem mais, nem menos. Resolvo deixar as portas abertas para a brisa. Entrego a alma para conduzir nesta nova etapa. Abrir mão do que negava e me mostrou uma nova faceta de mim.

Não é só o lombo do touro que me levava a ti. Ele morto, devorado e enterrado faz brotar as florestas que crescem incondicionalmente na luz do luar. Ainda tenho seu abraço, seu carinho e um trabalho. Preservando no jardim secreto as lembranças daquilo que não pode ser queimado. As almas agora balançam no compasso do sem fim.

E faz de conta que é fácil, como disse Clarice: "Faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro - pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado".

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Rastros do Vento


Por: Kali

Estava fria aquela noite em que sentava na frente do fogo para ver as salamandras a bailar. Resolvi tentar entrar para que o calor não se dissipasse com os ventos das dúvidas que baderolavam meus alicerces.

O fogo bailava dentro e fora de mim, como um sopro que faz flamejar as chamas. Eu tentei fugir. Ensinaram-me a ser assim: seguir pela estrada onde não passa o lobo mau, obedecendo a voz feminina da certeza estabelecida.

Eu estava com minha cesta de doces, comendo um a um os desejos diante da floresta escura ouvindo ao longe o uivo do vento. O fogo bailava dentro e fora de mim e eu já não conseguia ouvir nada além do pululante som das brasas carmins que saltavam em cada célula minha desejante pelo caminho escuro e sombrio daquilo que chamam tropeço.

Senti medo do vento. Ele parece ser incontrolável e penetra pela fresta da dúvida. Abri uma janela, mas ele escancarou as portas. Tirei a roupa e com a pele eriçada pelo frio e pelo medo, com os mamilos endurecidos pelo desejo, deixei que o vento penetrasse em cada parte de minha alma. Varreu minhas insanidades, papéis amarelados e o cheiro de água represada. Incendiou a fogueira e desapareceu deixando um rastro de lembranças e aroma de novidade.

As velhas roupas mofadas queimaram-se nas labaredas. Corri pelas planícies nos dias frios e chuvosos, nua, a procura do vento. O suor do rosto escorrendo pelo corpo molhado e quente, como a língua dentro da boca e nos lábios das intimidades.

O vento a penetrar-me muitas vezes serpenteando em todo o meu corpo. Meus pés cansados e acelerados para  não perder a sensação na estrada. O vento, a estrada, o calor, a língua e as passadas orquestradas pelo som da respiração ofegante mesclados com sons antigos vindos de Avalon.

As brumas desceram e fizeram as luzes dos postes parecerem ouriços de luz. O coração pulsante, o sangue por toda a parte, as pernas cansadas e o vento a reger a velocidade da busca.

Por fora uma leveza como quem estica as asas para voar nos redemoinhos de ar. Por dentro um calor, energia transbordante a lançar-me diariamente para estrada tentando buscar novamente o sonho do vento.

O vento faze-me brilhar e dançar como brasas tocadas pelo sopro.E tudo que eu quero é um pouco mais de vento em minhas chamas.

domingo, 29 de abril de 2012

Sem palavras


Por Silvia Badim e Kiara Terra


Desenho de Ana Vasconcellos




Se a vida toda coubesse em palavras eu escreveria. Sem preguiça cada letra. Frases inteiras, sentenças feitas, espaços vazios preservados. Nelas o intervalo entre nossos olhos. Se coubesse, se fosse o suficiente, eu teria feito. Mas não. A vida escapou-me do controle. A dança enlaçou-me a cintura, fluindo em seu ritmo intenso, requebrando e levando-me para além de mim. Um sol bonito ensurdeceu meus ouvidos, e encharcou minhas mãos. Tomou pra si minha boca e meu pensamento e, ao invés de escrever, eu vivi. Sem vírgula, cada momento. Vida enchente, vida humana do aqui-e-agora. Vida corredeira, que me surpreende a cada passo em que não penso, e não escrevo. Em que simplesmente sinto, com todos os sentidos despertos para o que corre em sangue e vísceras, em realidades que me escapam às palavras. A vida me ocupa de viver. 

 Aconteceu e não me lembro quando. Um arrebate sem tempo. Um vento que me levou sem que eu pudesse entender o que me levava. Foi então que eu senti, com o peito aquecido pela luz: sem tocar o chão não há como escrever. Sem pisar a terra não há como fazer poesia tangível. No voo palavra é vento transpassando a pele. No chão palavra é vida possível. Vento sem frio. Mergulho acolhido e quente. Amor não pode rimar com guerra, pois amor é sorte. Amor não pode ser reticência em espera sem solo. Depois de tocar a pele presente do outro, não há retrocesso possível. Depois de acessar o caminho secreto, viver é flor que desabrocha sem tempo. É perfume que adoça a alma e aumenta a fome. E eu tenho fome de vermelho. Vivo e vivido em desejos de ondas de mar. 

Eu rio a brincadeira bonita. Rio da sorte de querer viver. Secretamente antes, agora num declarar de janelas. Agora em vida de correr descalço, sentindo cada folha verde. 
O tempo das esperas havia terminado. Agora é deslize de apenas ser, nua, sem subterfúgios poéticos de algum dia. Joguei fora minhas réguas que nunca soube usar direito. Sempre foram pequenas para os meus desmedidos.

Estiquei palavra pra cobrir javali. Dobrei lavei e quarei ao sol, e nenhuma frase podia salvar-me de mim. Era nado em direção à correnteza mais forte de estar viva. Estava diante do salto. Cachoeira colossal. Saltei. Corpo na correnteza. O tempo lavou meus cadernos, molhou cada folha, desperdiçou os dias ainda não vividos e li: vá correr  sem medo.

Você nasceu agora, aqui de dentro de mim, e diante disso tudo tem música e sol. 


terça-feira, 13 de março de 2012

Sorriso de olhos verdes

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos




Talvez fosse uma dor que ainda existisse lá dentro, e latejasse sem sentido. 
Em momentos inesperados, sempre, como naqueles em que estamos felizes, beirando a intensidade do muito. 
O muito que em algum lugar ainda se assombrava pela ausência. Talvez ainda me doessem as ausências, e os revesses dos mergulhos nos abismos que culminaram em rochas pontudas e mares revoltos.  

Uma fragilidade me assombrava os olhos. 
Humana, demasiada, fragilidade de se pegar no colo com vontade de choro. Fragilidade de desamparo.
Infantilidade consentida que se escondia na vida adulta de tantos afazeres duros. De amores que não conseguia tocar assim, com as mãos totalmente desarmadas. 
Os dedos ainda sangravam, e eu não sabia como contar das feridas que se escondiam embaixo das unhas sempre coloridas e retocadas de maquiagem. 

As intensidades sempre me foram imãs. Atrações quase fatais, obstinadas pela vontade de se atirar no vermelho que dilacera tudo por dentro. Quase um vício, uma ansiedade, um ferrugem dourado que corrói tudo por dentro. Corrói deixando um lastro de beleza pelas coisas vividas, que um dia hão de se transformar, se possível, em asas de borboletas. Amor e dor, sim, amor e dor. Não sabia mais como desvincular um do outro, como se ambos fossem irmãos de mãos dadas. Duas faces da mesma moeda. 

Canso-me. Eu não quero mais. Não quero mais a dor. Deito-me sem pressa de levantar, com vontades outras de renascer em possibilidades novas. 
Estiro-me na grama e olho o céu, desejando o amor facinho, bonito de dia de sol. Todos os dias estiro-me, um pouco, mentalizando o mesmo desejo. 

Foi quando te vi passando. Lá deitada olhei para cima, e seu sorriso de olhos verdes me olhou com alegria. 
Verde vibrante, embora com desconfianças dilatadas nas pupilas. Verde desejo, verde presença. Verde esperança, verde vontade.
Verdes possibilidades. 
 
"Eu quero", pensei. E penso, a cada dia. 
E eu quero assim, o sorriso e o muito que pode ser leve. As desconfianças enfrentadas, que são passos para se construir um novo lugar. 
Um lugar de abrigos mansos e de felicidades espalhadas. 
Um lugar possível. 

Olho no olho, sem roupas que não nos cabem mais. 
Dança comigo?

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um canto qualquer

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos






*texto escrito em fevereiro de 2011. 


Depois que ela foi embora sempre faltava alguma coisa.

A cidade cantava um vazio qualquer. Um cor de rosa a menos no horizonte, uma nota suave que se escondia no entardecer do dia.
Um sopro de mistério que escapava do cair da noite.

Faltava sempre uma coisa a mais. Uma flor amarela sobre o muro, um passarinho que beijava o jardim. Aquela gota de orvalho pendurada na folha verde pela manhã. 
Essas coisas pequenas, você sabe. Que se ajeitam quentes no coração da gente.

Faltava uma magia qualquer. Aquele vento que me invadia durante a tarde, em sorrisos incontidos. Aquele frio sorrateiro que de repente percorria a espinha, bem antes do telefone vibrar uma mensagem qualquer. 
Aquele calor que coçava o pescoço e subia desavisado, fazendo corar as bochechas tímidas.
Ah, aquela esperança vermelha de ver tudo florescer em outras cores... Todo aquele universo, que me encolhia inteira no olhar do outro. Todo o outro que cabia inteiro nesse universo tão meu. O corpo mole, vencido. Como faltava. Como ela me faltava em silêncio.

Faltava-me também aquela muda poesia de estarmos uma de frente a outra, em um canto qualquer da cidade. Amplidão que nos acolhia, simplesmente. Sem perguntar nada. Não havia perguntas. Havia o espaço, apenas, com seus pequenos refúgios de tempos suspensos.

Tempos em que nos colhíamos, inventadas uma na outra. Tempos de surpresas boas, de admiração de olhos bem abertos. De tocar o que estava por trás de. Como ainda me faltam esses tempos.

A cidade canta um canto qualquer de ausência. Uma melodia à toa de saudade. Um canto doce que me lembra de não estar mais lá. E de estar, a todo tempo.

Imaterial canto da presença rarefeita, que se dissipa no céu no cerrado. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Homem das Sombras

Por Kali
Imagem de Ana Vasconcellos




Ela brincava pelo jardim. Subia em árvores de vestido, girava a saia na melodia inaudível. Ela era o universo em sua dança infantil. Bebia água e derramava sob o peito que se arrepiava pelo frio da ventania. E corria sentindo as folhas a esfregarem-se sobre seu corpo, as gotas de chuva a arrepiar a existência.

Ao longe um estranho desconhecido, atrás da sombra de uma árvore, devorava uma maçã e a inocência de menina, sugando sua  leveza para dentro de seu falo. Ele queria penetrar o corpo para  da alma roubar o perfume que ela exalava.

Quando os olhos se encontraram, percebeu-se desnuda. Correu para o quarto para procurar um vestido e com tanto medo das sombras trancafiou-se no armário. E lá dentro com as tintas de sua imaginação, pintou a floresta, as folhas, o tesão, sem reproduzir o estranho das sombras.

Em total escuridão, devorando uma maçã, ainda sim conseguia fazer a luz e por ela ver as sombras refletidas atrás da macieira. Sonhava com a cobra a dançar em suas intimidades e o dente do veneno a perfurar-lhe a carne. Às vezes acariciava-se desejando com desdém aquele obscuro sentimento que a atraia e repudiava com mesma força.

Um dia teve coragem. Abriu o armário e percebeu que não mais enxergava. Por não ver precisava experimentar todo mundo através dos outros sentidos. Cheirava, lambia e esfrega-se em todo caminho.

Até que sua língua provou o amargo gosto do desejo. Macio e suculento como um morango maduro. Colocou para dentro, um depois do outro, até sua carne explodir em pedaços. Seu sangue de tinta colorida com bruxas, fadas, gurus e anjos escorriam por todo lado.

Ela se fragmentara em todas as sombras e luzes que a habitava. Até que recuperou sua inocência perdida e nos olhos da sombra fundia-se em luz.

Alguém segurou no colo a menina. Acariciando sua face e cantando a doce melodia - Está tudo bem. Ela não enxergava e falava um dialeto estelar que pedia para ser devolvida ao mundo das tintas. Ela precisava bailar novamente e ver a beleza da vida.

Ele deitou-a na cama, acariciando seu corpo inteiro. Ela sentiu o cheiro do desejo. Com medo e movimento procurou o falo que a violaria. Encontrou uma flor macia que curou sua ferida.

Cheirou, lambeu esfregou-se até que as sombras se tatuaram em sua pele como obras de arte que chamamos de cicatrizes.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sede

Texto escrito a quatro mãos
Por Silvia Badim e T. Cora. 
Ilustração de Ana Vasconcellos





Aquilo que não sabemos nos protege. O instante delicioso e cheio de pergunta. Será? Reticência leve seguida de um sim-mergulho.Um sim-vôo. Um sim-abrir-se, estar no colo. A leveza tranqüila de brincar com segredos, medos e desejos preservados.

Um sim que sorri e nos conta que não há pouso seguro. Um sim-vento, que sopra sem bússolas ou rotas programadas. Um sim vivo que se delicia com as possibilidades. Abrigo sem teto, horizonte aberto de quem ganha as estrelas.  

E se o mar fosse um colo? Eu quero o mar. Inteiro para nadar toda na falta de margem e beira. Solta em flutuação florescente de quase noite. Algas que resplandecem sob a lua cheia. Eu quero a lua imensa e amarela, a me contar segredos de luz sobre as águas escuras. Boiar no fluxo das correntezas sem bater os braços e as pernas, sentindo o gozo fértil de estar permeada de mar. 

O desejo mordido com a língua salgada. Vivo por entre os dentes, saliva quente com gosto de mais. Permitir-se ser só desejo. Poder ser movimento sem palavras. Desejo vivo e vivido em ondas de mar. Diante do mar não tem palavra. Diante do mar só tem mergulho e pele arrepiada, em poros abertos para que o vem.  

Eu quero o colo  inteiro. Ser minuscula em sua boca grande e dormir sentindo pulsar o peito. As mãos firmes em minhas costas, selar o espaço quase inexistente de não sermos nunca a mesma pessoa. Rir do descompasso de ser, das diferenças humanas de quem é. E tudo só um encontro em que não se precise de mais nada.

Só as águas fartas e o céu em constelação silenciosa. O tudo que se esconde onde nada se diz, a contemplação muda da força. O corpo saciado  a vontade renascida do fluxo branco das espumas. Não há mais palavra porque tudo meu está nos olhos. Num além daqui aqui mesmo. E qualquer outro lugar onde se esqueça a morte. Onde a gente se lembre muito pouco de tudo antes, e traga junto toda qualidade de segredos engendrados nos músculos, seios e ossos. E nada que seja minha dor se despeje, nada que seja meu desamparo se espalhe. Só a pele macia tocada em dança ágil, onde toda dor vira perfume . 

Estou nua e o que não sabemos nos protege. O abismo tem poesia e só venta por que derramei toda previsibilidade. Então vem, brinca comigo de ser o mar que talvez chova. Que talvez vente e faça sol quente de arder as vísceras. Que talvez da terra fecundada nasçam flores vermelhas para enfeitar nossos cabelos. Que talvez apareçam pássaros nos nossos ombros que cantem belas cantigas. E que a gente esteja e seja até quando ventar e existir sede. 

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Silêncio de dentes amarelos - parte II

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos


Sim, ela estava viva. Era mulher, e era Silvia. Uma Silvia vinda de muitas Silvias, desde que nasceu do ventre daquela que também se chamava Silvia. Era das selvas. Aceitou seu nome, com tudo que ele significava. Abraçou-se, abraçou sua mãe, e abraçou seu ventre - que pariu um filho homem, brotado do mais profundo amor que se permitiu tocar. Sentiu-se unida com aquela de quem veio, e com aquele que pariu - num ciclo incessante de continuidade da própria vida. Pensou no sêmen que a fez, pensou no sêmen do qual nasceu seu filho. Sofreu a incompreensão do masculino, e olhou de frente sua esquisitice e medo do sexo desconhecido. 

O homem ainda machuca. E machuca sem rosto e sem endereço, com força bruta capaz de fecundar o feminino. Sentiu amor pela incompreensão, um amor grande cheio de medo e vontade ardida de ferida.

Soube-se mulher. Mulher que é capaz de jorrar sangue pelas vísceras abertas de todas as gerações que pariram esta terra. Mulher que pode parir a si própria, e gerações inteiras. Que é capaz do impossível de carregar e alimentar quem tem fome. Que reproduz a força gerada no ventre do universo.  

Ousou rezar para a força. Ousou ter fé. E sentiu uma mão quente sob sua cabeça a irradiar luz. Colocou a cabeça no chão, e do chão sentiu seus ancestrais feitos de vento, água, terra, folha, raio e trovão. Ouviu o som marcante e ritmado a lhe tirar a consciência, e deitou no chão para nunca mais se levantar sem ele. Transmutou-se. E foi capaz de sentir a realidade palpável dançar com a realidade que agora toca com a percepção da alma. A emoção foi boa como um encontro desejado. Emoção feita do açúcar da casa da sua infância.

Pegou-se no colo. Ela era menina, e olhava o mundo com olhos de encanto. Ela tinha mãe, tinha pai, tinha irmã, tinha avós e tias sorridentes, cachorros, gatos, vizinhos falantes, amigos pequenos e portas sempre abertas. Tinha o amor sólido pregado nas paredes da velha casa, em vários quadros antigos. Chorou de saudades. Um choro sentido que inundou o chão da sala.

Lembrou-se da certeza dos dias felizes na rua que a criou. Do colo grande da mãe, do aconchego nas noites de frio e susto, da rotina do dia resolvido. Das pessoas por quem nutria o mais profundo amor sem mágoa. Sentiu saudades do amor sem receio e sem decepção pré-agendada. Quis ficar com a menina no colo como se não houvesse amanhã. E nem hoje. Quis acalentá-la antes de romper-se em descrença desconhecida. Antes de camuflar a fragilidade de ser Silvia.

Desejou que a vida inteira coubesse na sua infância colorida, onde ela estava salva. E desejou esconder-se ali, no meio do quintal onde cresceu com o pé no chão - com suas plantas verdes, cimento cinza, e esperança de menina. Mas o relógio apitava o tempo presente. Sacudiu os tapetes, trancou a porta, e guardou a chave no seu coração. Sentiu que esses momentos continuariam vivos, até o fim da lembrança dela própria. Vivos de memória arraigada nas pernas que caminham o dia em que se respira.   

Num piscar de olhos, conseguiu voltar para a cama de hoje. E caiu no sono com as cores quentes, as mãos calejadas, os ovos, o labirinto, os tambores, a menina e a força ancestral. O silêncio. Despertou com as lágrimas ainda úmidas. E conseguiu enxergar o agora em que se pisa na matéria. O hoje com seus desafios concretos de facas afiadas. O hoje que ela queria enterrar no ontem e no amanhã que não vinha. Os desafios duros que teria que amolar com os dentes. A couraça que teria que vestir para não se perder nos espinhos.

Correu para a porta. Lembrou-se da fuga, dos vícios, das armadilhas, e segurou-se para não acender o cigarro. Percebeu que estava, há tempos, em estado latente de fuga. Da vida que não enxergava no hoje de injustiças, burocracias e dificuldades pungentes. Que não conseguia visualizar em meio ao cansaço e descrença diária. Em meio à falta de borboletas a lhe tomarem o estômago.

Fuga velada do ovo que não desabrochava para lhe dar asas. Da resposta que não chegava certa como o colo da mãe. Da própria face que não reconhecia mais depois de escavar rumo à dor inconsciente. Da voz que não saia e lhe mostrava o silêncio de dentes amarelos. 

E ela não sabe mais o que lhe resta depois do silêncio. Sabe-se indefinida e permeada por algo mais. Algo que foi semeado na terra molhada com o sangue vermelho que derramou de sua carne trêmula. Carne aberta pelos dentes que morderam os ossos da alma. Dentes que ainda estalam ao lembrar o gosto de morder as entranhas.

Mas existe alguma esperança teimosa. Algo mais há de brotar quando o buraco se abrir em caminhos de arco-íris. Quando dos ovos nascerem asas que possam enxergar o fim do labirinto. Até lá, resta apenas este imenso deserto com flores plantadas em areia densa. Flores que derretem sob o sol tórrido, e deixam pétalas soltas a dançar no vento. Restos de folhas que congelam com o frio estúpido da noite aberta.

O silêncio.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Silêncio de dentes amarelos - parte I

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos



Ela ainda acorda. As noites passam frias, e os dias quentes de abrir os poros. Transita pelo deserto e pelo silêncio amarelo da areia. O silêncio engoliu sua voz, restando-lhe apenas algumas melodias roucas. Foi preciso calar a ânsia da resposta – ou da não resposta. E o desacerto das palavras desencontradas. O silêncio é suave, e sagaz. Ensina-lhe coisas que as palavras não sabem dizer. Coisas que se aprendem pelo sonho, e pelos pensamentos soltos no vento.

A suavidade queima seu coração com espinhos e código cifrados. Convida-lhe para seguir em interrogações. Agita-se. O coração corre. E ela procura em vão uma passagem menos árdua para cuspir as palavras não ditas. O labirinto ergue-se em grossas curvas sem possibilidades de pistas rápidas. Ansiou pela fala mansa e articulada que tantas vezes a livrara de si mesma. Olhou os lábios cerrados e a garganta seca, e riu-se da velha mania de querer encurtar o caminho com atalhos truncados. Já era tempo de curvar-se diante do assombro.

Ajoelhou-se. Pediu indulto aos vícios. Às armadilhas inconscientes que tecera em linhas de ferro. Queria a liberdade fria da noite sem luz. Queria a nudez. Olhou-se com clemência, ainda envergonhada, como quem apaga o cigarro aceso no meio da tragada. Estava verde de tosse seca, e o ar viciado ainda lhe enchia os pulmões. Sabia que não seria fácil largar os hábitos, e deixar vir à tona a face branca sem a maquiagem do tabaco. Ela gostava do cheiro mórbido, do formigamento da mente, de esquecer-se no meio da rota pálida da fumaça. Mas era preciso deter-se. Interromper a fuga cotidiana. E seguir respirando ar puro.

Era fim de maio. A luz do entardecer transpassava a janela com raios florescentes, inundando o quarto de laranja-rosa-amarelado. Cores que bailavam no horizonte azul do planalto central. Seus olhos refletiram o colorido. E ela coçou os dedos sem cigarro. Abriu a blusa e sentiu o quente lhe subir pelos seios arrepiados. Sentiu coragem de esquentar a si própria com a vida que vinha lá de fora. Desejou aspirar a própria vida viva em tons de laranja. Seu peito ferveu. Estava em silêncio escaldante.

E em meio ao calor do fim do dia, uma imagem lhe apareceu nítida como o retrato em preto e branco que enfeitava a estante. A imagem dela, envelhecida pelos anos, e frágil como uma boneca de porcelana. Assustou-se. Não estava preparada para enxergar o que reside debaixo das camadas de existência dura de mulher sem rédeas. Uma dor aguda lhe apertou o peito. Repulsou a imagem. Cuspiu sobre a porcelana branca. Quis esmigalhá-la com mãos impiedosas. Mas freou o ímpeto junto com a lágrima que insistiu em pular de seu olho esquerdo. Será possível pegar a boneca no colo? – agitou-se. Porque tanta repulsa a essa figura alva de fina existência? Seus passos insistiram congelados. E a pergunta se fez grande. Teceu ninho no seu travesseiro, e colocou ovos para serem chocados nas noites do inverno que se aproximava. 

Sentiu debaixo do lençol uma dor inconsciente de raízes grossas, a roçar-lhe as pernas. Para arrancá-la seria preciso pegar na enxada. E cavar até bater em água limpa. Aproximou-se da enxada, e agarrou-a forte com calos nos dedos. Uma voz conduzia-lhe a empreitada. E ela foi se aproximando desajeitada, até que começou a cavar. Suava o corpo todo. Sentia sede e lambia o suor, com a espinha dorsal contorcida. Não é fácil derrubar os próprios mitos. Pensou nos ovos que um dia haveriam de ganhar asas. Asas leves para alçar vôo livre. Asas de enfrentamento solitário na casca do ovo.

A cada estalada da enxada, sentia um músculo que não sabia existir dentro de si. Doía em múltiplos graus de dor interior. Dor que custava em aceitar como sua. Dor que não tinha mais nome. Doía. Mas sentia-se viva em pele de mulher escavadeira. Continuou cavando imagens e sentimentos desconexos, que sorriam por respirarem debaixo da terra. Dor e prazer. Amor e ódio camuflados. Mágoa sucumbida e carinho latente. Vergonha e orgulho de si própria. Faces da mesma moeda. Já era tempo de revelar e aceitar a face que não é bela.   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Flerte

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos





De repente ela estava ali, sentada em meio a um mar de gente sem rosto. 
A noite era fresca, e o evento era um protocolo divertido. 
Ventava um vento leve, e eu cheguei com as boas aberturas que me percorriam os dias. 

De repente eu estava ali. Com uma máquina na mão a registrar o escuro que envolvia as taças de vinho e os livros autografados. 
Esbarramo-nos, num instante cheio de acontecimentos.  
Seus olhos coloridos me convidaram a sentar. Eu sentei, com a naturalidade de seguir o pulso. 
E no ritmo acelerado de sentir, fui soltando palavras que fluíam ao seu encontro.  
Uma atrás da outra lhe chegavam conhecidas, em meio às outras vozes que ali estavam. 
Seu sorriso grande parecia gostar do que eu dizia.

Encontramo-nos. 

Tudo aconteceu muito rápido, impulsionado pelo fogo vermelho dos astros.  
Em segredo ela me olhou e disse: eu quero. 
Ouvi sua fala sem voz, e senti a força de seus olhos atentos. 
Em silêncio respondi: eu também quero. 

E de repente tudo estava ali. 

* texto escrito em agosto de 2011.