segunda-feira, 19 de setembro de 2011

extravasamentos


por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos





Eu fiquei buscando um modo de extravasar aquela intensidade, aquela intensidade que queimava desde a semana passada, aquela intensidade que surgiu de algum lugar da memória do corpo, eu busquei sem trégua e com algum pesar, eu busquei.
E nessa busca eu fui assim, devagarinho, acostumando-me com as minhas novas roupas, com aquele novo jeito que eu não sabia que tinha, com a velha nova face desconhecida, eu fui. Fui direta e profunda, sem medo de mergulhar, fui seguindo as pistas que aquela noite me deixara assim, sem mais, junto com a ausência vazia do dia corrido que se seguiu a tudo aquilo, eu fui.
Não era você, não era só você, era eu no meio de tudo aquilo, era eu assim despida depois de tanto tempo de dor, era eu assim enfrentando os novos tempos de estar à flor da pele sem escudos, era eu sem saber dosar mais nada, era eu no meio da correnteza de mim mesma. Sim, também teve você, a gente dançou junto, teve você mas não foi só isso, foi algum destempero de estar assim: latente, sem controle de racionalidade, pessoa de lembranças de outras pessoas cravadas no peito e sem porto de chegada, pessoa de anos de acúmulo, pessoa assim latejada.
Depois de tanto tempo construindo barreiras e muros intransponíveis, arquitetando proteções para conter as águas, as minhas águas sempre tão fartas de sentires, eu quebrei tudo, simplesmente, quebrei sem olhar para trás, joguei tudo fora, todo o amontoado de proteções, joguei tudo de uma vez só, e tudo se perdeu para nunca mais. E que frio percorria a espinha. Era muita vida, era muita água, e eu a nadar no meio da correnteza sem bóia nem nada, sem barco, sem esteio, sem uma mísera máscara, nada. Era eu e toda aquela vida.
Aí teve você, aquele encontro bom, teve você e eu no meio daquelas águas revoltas. Teve você e eu sem saber mais nada. Eu não soube mesmo, não soube dizer ou explicar, e eu não queria palavras concatenadas, eu só queria sentir. E eu senti. Senti a mim mesma, senti o feminino sem reservas, senti a veia pulsando por algo mais, senti seu corpo tão quente e tão branco junto ao meu, senti seu sorriso tímido e tão pulsante, senti tudo de uma só vez e eu não soube.
Eu estava mergulhada e assim eu fui quando a semana seguiu, assim eu te procurei quando nada fazia sentido, assim eu te escrevi sem quaisquer pretensões a não ser extravasar o muito que queimava a pele. Queimou e eu segui, eu enfrentei o fogo, e foi tão bom. Foi bom andar tão cheia de vida, foi bom olhar para mim só e despida, foi bom.
Tudo vem acontecendo muito rápido nesses tempos de 2011, faz apenas uma semana e já faz tanto tempo. Foram tantos cigarros, tantos copos cheios e vazios, tanta gente que passou por mim e eu andei. Andei até chegar a meses, percorri até fazerem-se anos e eu ainda estou aqui de pé e tão viva. E tudo tão bom apesar do fogo que ainda arde, apesar de não saber o que fazer com tanta vida, é tudo tão livre e tão bom.
Alguns confetes coloridos me enfeitaram a face, e sucederam-se mais tantas coisas sem voz e sem quaisquer explicações que eu vou me acostumando a andar assim e não saber, apenas deixar-me guiar pelos sentidos que assolam a racionalidade. Agora eu já não me perco tanto, a minha velha nova face me é mais familiar, eu equilibro um pouco o destempero, eu estou firme. 
O tempo brinca de ser grande quando corre tão pequeno pelos dias, e eu estou aqui tão repleta de gente e tão repleta de mim, tão fluída nesse meio do caminho embolado e intenso. Intensa assim eu sigo com mais coragem, com mais vontade, com mais vida e te falo que está tudo bem, está tudo cheio e ainda restam muitos cigarros com sabor de amor pelo desconhecido. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Latejada

Por Renata Penna e Silvia Badim
Foto montagem de Ana Vasconcellos




Essa foi então a minha procura, eu fiquei buscando uma palavra – uma palavra perfeita para te dizer baixinho no meio da madrugada quando não houvesse mais ninguém, naquela hora silenciosa quando lá fora só existisse mesmo paradeza e escuridão, e então eu pudesse dizer sem descuido e ainda cultivando um fiapo de esperança e quem sabe até mesmo amor, quem sabe. E essa palavra escondida eu busquei com um quase desespero e por todos os lugares, eu busquei nas nossas noites de conversa e lua cheia e gargalhada até nascer o sol, eu busquei nos nossos abraços apertados sentindo a respiração, eu busquei nas tuas mãos bagunçando os meus cabelos cacheados e nas minhas mãos contornando divertidas o teu rosto tão cheio de sorriso, eu busquei nas nossas tardes de lago e pôr-do-sol, de cafés e andanças sem rumo, eu busquei até mesmo nos teus bilhetes apressados e nas minhas cartas intermináveis dizendo tudo sem dizer coisa nenhuma, eu busquei – acredita em mim, eu busquei até onde não sabia que se podia chegar sem morrer um bocado, eu busquei. Fiquei achando que ali residia a solução, e que então seria tudo definitivo, que então a gente encontraria a resposta e a cura e o respiro que andava querendo tanto, mas no fim das contas. Continuou tudo como estava, do mesmo jeito, e no fim do dia ainda doía tanto.

Doía sem remédio, e então eu andei. Andei por léguas sem pausas, por caminhos longos e tortuosos que me contavam segredos sobre os meus mergulhos, e sobre os nossos mergulhos em universos divididos. Por desvios que me contavam dessas dores brotadas das escolhas de quem vive assim, com o coração na ponta dos dedos. Foi então que eu soube, eu soube como uma luz que desce e aquece o peito. Uma verdade silenciosa, um sopro generoso, um sussurro de consolo. Eu não sei viver pouco, ou sentir pouco. Querer pouco. Preciso da entrega sem reservas, das profundezas, daquele espaço partilhado que a gente não revela ao mundo lá fora.  Gosto de adentrar o que encontro nesse mundo onde as sensações me dominam. Quase um vício que aprendo a conviver com. Foi então que eu soube que é preciso colher as dores que vem junto com o que ele me traz de bom, os tombos duros e grandes de quem vive à beira de. Eu aprendi, e eu acolho.  E sorrio ao pensar que eles valem à pena, porque decorrem dos momentos em que eu pude sentir de novo, e com isso deixar a vida se espalhar densa por onde corre o rio que vai dar no mar. Sim, eu preciso das águas fartas. 

Eu andei tanto, por tantas voltas, e de novo cheguei até você. Depois de ter percorrido outras paragens, de ter me embriagado por noites claras e cheias, de ter me perdido por rostos desconhecidos, eu entendo. Entendo que você topou ir comigo lá no fundo, que você topou, que você prendeu a respiração e foi comigo até o fundo do mar. Que você estava lá e eu te via. Que eu tinha medo de sair desse lugar, que eu tinha medo de você ir embora quando partiu para sua jornada longínqua. Depois de ter desculpado o destino, de ter te olhado tanto e de novo, eu volto para esse buraco vazio onde estão os sentimentos que você guardou, onde estão os meus sentimentos agigantados pelo tempo, onde moram os nossos sentires sem rumo e que respiram sem ar.

Volto para esse mesmo lugar onde eu não encontro a palavra que lateja, onde eu ainda estou nua com as mãos enlaçadas às suas. Volto para dizer que aprendi a deixar doer, e que as dores são adubo para os novos tempos. E esses novos tempos nascem do que eu fui nas noites brancas de lua que dividimos arrepiadas. Assim, sem mais, eles nascem, e você nasce de novo, a cada dia, latejada. E eu não tenho mais medo. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Vento livre

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos


Não se pode encapsular o amor. 


O amor é vento livre, que assola as planícies com sopros desgovernados. Que venta montanhas e cordilheiras em uivos surdos. Que carrega as águas que deslizam fortes pela cachoeira. O amor é vento que nasce pequeno, e sopra sem cessar até que possamos tirar os pés do chão. 

Não se pode encapsular o vento. A terra do amor é uma terra sem porto. O amor não se aporta, é navio sem âncora, conto sem ponto. Apenas se compartilha, se dissipa, se perde em si mesmo. Morre e renasce em diferentes formas. Uma, duas, dez, mil formas que enlaçam os corações desavisados.

O amor não cabe em nossas mãos, ele escorrega e alcança os ossos. Adentra a pele, perfura os vasos, e quando chega à medula já é outra coisa. É matéria prima do sangue, primo-irmão das células brancas e vermelhas. Mistura-se entranhado nas veias, e pulsa em diferentes tonalidades até ser expirado em ar quente pelos pulmões. O amor é a expiração que alcança o universo, em diferentes partículas. É o quente e o frio, o ar que volta para dentro para inflar a vida. O que é expelido para alcançar a morte.

Não se pode encapsular o ar. No momento em que tentamos colocá-lo dentro da garrafa, ele já é outra substância. O amor se transmuta fluído, se camufla entre desvarios, corre em passos largos para alcançar o horizonte que não tem endereço. 

Não se pode reter o vento. Diante da ventania não há nada que se possa fazer, e então sentamos quietos, com os cabelos soltos e a pele em poros abertos. Com os olhos vidrados e as mãos em prece, para acolher o mistério: o amor pode percorrer o indizível.

E com sua fala sem voz, nos conta segredos que não se fixam na memória. Segredos que nos espantam, e transbordam para além do que podemos lembrar com raciocínio linear. O amor é tesouro que juntamos, peça por peça, em sentimentos acumulados desde as primeiras sensações de nascer em si mesmo. O amor é tesouro de sentir, e não há baú capaz de abrigar a riqueza conquistada. O amor não tem tampa, molde, forma, espaço apertado. O espaço do amor é o espaço do mundo. 

Por vezes vem a agonia, e queremos prender o amor em alianças, papéis, regras, pílulas e tantos certos e errados. Ritos que celebram, símbolos que sacramentam, poderes de ditar ordens, remédios para aliviar a dor e evitar ameaças. Crenças de que o amor pode ser fincado no chão de terra, pode ser embalsamado pela casa construída, pode ser tijolo de pedra com cimento em cima. Crença de que o amor se possui, e se dirige.

Mas o amor é teimoso, e sua teimosia corrói as cordas. Vibra eletrizante pelas camadas duras. O amor não tem dogmas. É reino sem lei, com o rei deposto.

O amor pode ser vivido com ou sem presença, com uma, duas, três, quem sabe quantas pessoas. O amor é generoso. Pode ser flor solitária que desabrocha no deserto, ou pode caber justo no espaço da partilha de dois. Pode se esparramar para além do que podemos contar nas mãos, pode transbordar e alcançar os corpos nus ou, quem sabe, pode nunca ser tocado com os lábios. 

O amor não tem gênero, não tem idade, não conhece etnias e credos. Não tem rótulos ou caixinhas com etiquetas. O amor não tem nome, sobrenome, família e descendência. E ri a todo tempo das regras inventadas, tão frágeis e comezinhas. Boas risadas que nos surpreendem quando, de repente, o peito sopra e o coração diz em silêncio latente: eu amo.

E a gente ama. Mesmo quando não quer, mesmo quando não pode. Mesmo quando tudo dá errado, quando existe medo, quando as barreiras se erguem tão grandes que não conseguimos ver o céu. A gente ama embaixo da aliança apertada, quando o papel falha, quando a regra diz não. Quando a gente se espanta pelo que não pode e, de repente, de ponta cabeça, sente as artérias grossas carregarem os mais delicados sentimentos.   

A gente ama mesmo quando não tem voz para dizer, quando é inviável, quando a distância é tanta que parece sonho. A gente ama quando a vida aperta e corremos para longe do susto. A gente ama mesmo quando foge. 

E o amor não tem vaidade exacerbada, não desfila em poses de fotografia. O amor não sai na foto. Esparrama-se pela cor azul e branca do céu, pelo preto e branco que se esvai em tons de cinza, pelo tempo que mancha a lembrança do papel. Pelo vestido que não serve mais, pelo arrepio que percorre a pele embaixo do casaco, pelo escuro dos olhos fechados.  

O amor se espalha para ser inventado muitas vezes, para ser descoberto um pouco a cada dia, para adquirir novas e impossíveis formas.

O amor é irmão da liberdade, e qualquer sapato lhe aperta os pés. 

Estejamos descalços, enfim. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Algumas Tréguas


por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos




Para uma menina no seu país inventado.

“Temos tréguas de paz”, pensava eu no decolar do avião que saia de Buenos Aires, e me trazia de volta para casa. 

A busca incessante pela completude de ser, talvez fosse permeada por momentos em que nada mais é necessário, além daquilo que abrigamos no peito no momento em que se respira. E nesse momento eu respirava feliz, e aliviada por aceitar-me finita e cheia de anseios que nunca se satisfariam.

“Aceitar minha própria incompletude talvez seja a senha que preciso para acessar os meus segredos de paz”, suspirava eu ao olhar a janela com suas paisagens de nuvens gordas. Um tapete branco, suspenso no ar, acompanhava meus sonhos acordados de viagem. E eu estava desperta para a minha pequena existência faltante.  

As novidades dos dias passados acalentavam-me a alma sempre ansiosa e sedenta por algo mais. Chegara, enfim, num lugar onde eu queria estar. Um lugar meu que se aventurava a estar só, e andar só, pelos desrumos de se trilhar um caminho tão íntimo.  

Um lugar que nascera de tantos tempos de se estar perdida, com o coração batendo fora do peito. Um lugar que emergiu lá de dentro do fundo do poço, aquele mesmo fundo do poço que a minha amiga Lélia Almeida* descreveu como um lugar úmido e próspero, capaz de nos revelar nossas obscuridades salvadoras. Onde a aridez de si mesmo é quase insuportável, mas nos revela a matéria prima de ser o que se é. E assim nos salva das mesmices e armadilhas construídas para que nos separemos da nossa vida mais profunda.

O vôo seguia desconfortável, mas dentro de mim estava quente e bom. Sentia-me livre e desculpava a mim mesma por tudo que nunca poderia ser. Por tudo que eu nunca poderia tocar e nunca poderia experimentar em tempo de vida.

As limitações, enfim, me davam um sentido. E aprendi: eu nunca poderei tê-las. E, ao não tê-las, aceito reduzir-me ao que encontro nesse caminho estranho de se andar com as próprias pernas. Tudo que colho tem sentido, porque é o que me cabe. E é libertador livrar-me de querer o mundo que nunca pode me caber inteiro.

As horas seguiam com avisos do piloto e comidas apressadas. Com um sorriso discreto no canto da boca, voei devolvendo ao universo azul da janela o que nunca poderia ter. E como retribuição pela minha teimosia de tantos tempos, ele me devolveu presentes possíveis de se tocar com as duas mãos. 

Enfim, parecia ter aprendido a escolher. A aceitar as perdas do que nunca é quando se escolhe. E a ganhar o que me oferta o caminho escolhido.

Nesses tempos de viagem, suas linhas chegaram-me tão conhecidas. As letras familiares contavam-me sobre o anseio de acertar o passo dentre as tantas oportunidades de ser, que não se desdobravam em realidade. Um anseio de ser livre, de não precisar, de poder se desenvolver plenamente rumo ao crescimento que se almeja.

Mas o que, enfim, se almeja? Quando seguimos um caminho visando um desfecho, somos sempre surpreendidos pelo desfecho que não chega. Ou pelo desfecho vai aparecendo diferente das nossas expectativas, com cores e tons que nos machucam os olhos. As cores cinzas das incertezas e dos desvios não combinam com o colorido de um lugar pleno de primavera, que desenhamos como a nossa trilha esperada.

Mas não seria esse, também, um modo de se vivenciar o caminho? Não seria o cinza, também, uma bela cor para colorir os céus de si mesma? Lembro-me do Guimarães Rosa, e da travessia de que ele fala tanto no Grande Sertão Veredas.  A travessia é um bálsamo, onde se colhe as grandes riquezas que nos levam a qualquer lugar. É nesse meio do caminho, embolado e cheio de areias movediças, que se dispõem para nós as maiores grandezas de qualquer percurso.  

E só se pode chegar inteiro quando se vive a travessia. Alerta para o fato de que, aquele lugar em que imaginávamos chegar, nunca será aquele em que aportaremos num futuro próximo ou distante. A gente atravessa um rio a nado, diria Guimarães, e vamos parar numa margem bem diferente da que se pensou antes de pisar nas águas. As águas têm vida própria.

E, para as pessoas que não aceitam soluções prontas e massificadas, o caminho é muito mais longo, e as paragens muito mais mutáveis e escorregadias. Muitas voltas e percursos por desertos, tempestades, terras de gelo e lugares sem nenhuma cor. Mas que nos trazem, a todo tempo, delicadezas escondidas em espinhos e ventos cortantes.

Se o caminho tem coração, ele pulsa. E se o caminho é seu, ele é rico em aprendizados, e ele é como deveria ser. Mesmo com as durezas e asperezas de se andar de ponta cabeça por tantos quilômetros. Mesmo com a tontura de se ter o sangue na altura dos olhos, a vista turva, e nenhuma certeza de onde se possa pisar em terra firme e dormir abrigada do frio.

Aqui de longe torço para que você se acolha com a devida generosidade. Que saiba perder para poder ganhar, que saiba se ouvir para poder escutar o que o destino lhe traz com as mãos cheias de flores. Que saiba aceitar os tempos duros, o fundo do poço, os dias de sede e boca seca em frente ao mar.

Aqui de longe torço para que a sua força cresça em coragem, para que seu fogo se espalhe em brasas de esperança, e para que novos tempos possam emergir para te fazer feliz com o que trazes para deixar no mundo, seja ele o que for. E como for.

Conte comigo para inventar caminhos e dividir atalhos mais brandos nessa urgência de ser o que se é.

* Oração do fundo do poço, de Lélia Almeida: