sábado, 7 de maio de 2011

Tempos estranhos

Por Silvia Badim/ Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


Eram tempos estranhos.

Ela estranhava tudo como se, de repente, um novo eu aparecesse para lhe contar para ela mesma. Um eu que falava no silêncio, sem pressa de soltar palavras ao vento. Sem pressa de acertos e de certezas. Sem pressa de explicar-se.

Ela estava calma. Estranhamente calma. Alva e distante, longe do mundo que espiava com alguma concentração desencontrada.

Sentada na beira do rio, avistava o horizonte nublado sem bandeira de chegada. Ela estirava-se lenta, arrepiada, molhando os pés cansados. Cansava-se.

Lá estava ela desconstruída, juntando os grãos dispersos para tentar enxergar a face refletida. No meio do peito um vácuo. No meio das memórias um lapso. Sem pai nem mãe, sem lastro. Ela solta e só no espaço-tempo.  

A água estava turva.

Já não sabia mais o que contar para ela mesma. Tentava achar histórias em que se reconhecesse inteira. Puxava o fio das lembranças guardadas, emaranhadas. Uma a uma apareciam brancas, sem escritas de diário. Sem as mesmas velhas rotas de segredos inventados.

Ela estava turva.

Seguia a voz que lhe soprava verdades aos ouvidos. A voz que lhe espetava incômodos, e lhe convidava a reconhecer o medo. Que a fazia chorar por dentro, aquelas lágrimas que não brotavam em soluços.

A voz era escura. Era quase um sonho dela mesma.

E ela aceitou a sua companhia sem presença. Aceitou ela mesma sem formas e sem arestas. Aceitou a dor, e a fragilidade de seu próprio caminho. Aceitou-se assim, sem começo nem fim, com os olhos inchados, as olheiras escuras, e a pele manchada de sol.

Sim, também o feio. Também a mentira. Também os calos e as cicatrizes nas pernas grossas. Também o estar perdida, com frio e com medo. 

O vento soprava constante, e o céu aparecia imenso em seu azul cintilante. Todo aquele cerrado vivo. Toda ela viva sem contornos. Toda ela pronta para ser reinventada, sem a maquiagem de outrora. Trêmula, pálida, robusta. Transitando por um vasto deserto com águas abundantes.

Sim, eram tempos estranhos.