quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Rio Cheio

Por Silvia Badim/Gaia
Pintura de Ana Vasconcellos

 



Para você que é vulto de lua cheia
E só aparece quando eu apago a luz.  









Era um dia de sol.
Um dia que amanheceu sorrindo, e acabou desabando em temporal de varrer os arredores.
Um dia aberto em possibilidades, que acabou por desaguar nas incompreensões das nuvens revoltas.

Eu estava lá. De repente tão só. Tão permeada pelas minhas ausências.
Sem casaco, sem sapato, poucas peças de roupa.
Os braços arrepiados pelos ventos frios. Os pés pisando as poças de areia recheadas pela força das águas.

A pele molhada, arredia ao tocar aqueles pingos, que ardiam as intensidades dos mergulhos recentes.
O frio que não passava. A água que não cessava. O quente que não vinha.
Eu e a minha solidão povoada.

Em algum lugar eu acreditava. Em algum improvável, capaz de acalentar a resposta muda.
Acho que ainda acredito. Mesmo que o improvável não chegue.
Mesmo que ele seja vazio, e me deixe aqui a enxergar o que não vem.

É difícil esse lugar - o lugar da espera. A espera de uma passagem.
O estar nua diante do susto. O estar frágil diante do sentir que nada me fala.
O meu eu não racional.
O estar faltante. Que é tão meu, como um fruto que colho pelos acontecimentos, brotados da minha mais profunda vontade.
Tão difícil, e tão humano. Tão cheio de perdas de ilusões sobre mim mesma.

Coisas que não consigo expressar com palavras inteligíveis.
Você sabe, essas coisas todas.
Que latejam em língua estranha, e só fazem sentido quando estamos em silêncio.
               
Em algum momento desejei que você também estivesse aqui.
Por um momento as mãos dadas, o corpo presente, as expectativas acalentadas.
Por um momento breve, algum engano bom. Algum engano possível. 
               
Oscilo.

Às vezes tão certa. Às vezes tão perdida nos labirintos desse inconsciente que se revela de tantas formas.
Às vezes tão calma, às vezes tão revolta.
Às vezes desencontrada para sempre. Para sempre escondida dentro do buraco.  Às vezes tão clara como as águas cristalinas que brotam das nascentes. Tão transparente para que me mergulhem.

Não sei porque lhe escrevo tudo isso. Talvez para dormir e acordar refeita do susto.
Talvez para amenizar o frio da chuva. Talvez porque tudo seja tão impossível, e faça tanto sentido quando lhe falo.

Estou cansada.
Esse cansaço que faz a gente querer esticar a rede e se acalentar no macio, balançando, por um tempo sem tempo. 

Mas a travessia continua aqui do outro lado do Rio.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Nascer às avessas

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


Sal.

As lágrimas tinham gosto salgado. Na penumbra daquele fim de noite, ela sentiu o gosto de lamber-se em grandes goles. Estava voraz, ávida de vida líquida. Sentindo-se forte com as pernas grossas e o corpo cansado. Força que vinha da sua mais profunda fraqueza. De seu corpo que já não era mais o mesmo. Ela que já não era mais a mesma.

Queria, queria tanto. Queria nascer. Mas o que vinha era o nada da madrugada, buraco vazio por onde ela passava inteira. Chovia. Era noite das águas. E ela não nascia.

De repente, sentia-se caber no amor do outro. Inusitada, ela tocava o amor sem repulsa, arrepiando-se no mar salgado e espesso. De novo o sal. A plenitude densa do atirar-se em outro corpo, de aceitar o acolhimento nu em metros e metros de equivalência.  

 “Amar era quase como nascer”, ela pensou. E esse pensamento tomava-a de impulso. Ela recolheu-se na noite aberta, vagando sobre seu nascer que não vinha. “Amar era como escorrer em outra vida que pulsava pelas entranhas”, pensou de novo.

Aqueles tempos de sal. De boca seca de tanta água salgada. Ela havia se deixado amar, permitindo-se vagar sem explicações por aquele universo íntimo, vermelho e quente. Deixar-se amar tinha gosto bom.

Lembrou-se menina na cama da mãe. A vida enorme lá fora, e o acolhimento macio de lençóis brancos. A vontade de desbravar o mundo, de cruzar os mares sem nunca sair daquela concha grudada no fundo do oceano.

Lembrou-se do amor como um abrigo de útero. Da unidade intrínseca do ser compartilhado. Unidade que expelia, e de onde se precisava nascer. O amor que empurrava para fora, que passava pela vagina aberta, que sangrava e se dissipava no ar.  Nascer doía. Era o amor faltante.

E ela tinha medo das faltas. Lembrou-se, perplexa, das lacunas que nunca seriam preenchidas. O amor experimentado podia ser tão pleno, e tão tristemente evasivo. Tão humano, tão mortal. Tão fatalmente solitário. “Talvez amar fosse acolher as faltas”, balbuciou meio sem querer. Talvez fosse aceitar a incompletude tangível embaixo da pele, as imperfeições, o que nunca poderá ser em todo tempo que pulsa.

Sim, amar era só. Era o aquietar-se. Ela sorriu, e lembrou do encontro silente de duas solidões. Do ar leve e escuro do quarto, que alimentava as respirações que se aquietavam juntas. “Talvez amar fosse só abrir os braços”, iluminou-se. E quis caber inteira naquele abraço que era feito de todos os já momentos vividos. Aquele abraço que não acabava por dentro.

“Talvez amar fosse nascer às avessas”, matutou. Talvez fosse a coragem de mergulhar no líquido denso, sem medo de não mais respirar. Sem medo de adentrar o escuro flamejante do útero vivo. A coragem de estar dentro, para depois transmutar-se em sua própria solidão. Para deixar a placenta, e deixar-se esvaziar sem susto.   

Ela agora pensava no esvaziamento. Ainda não nascera depois de estar dentro. Doíam-lhe as contrações do esvaziar-se. Ela estava pronta? Sabia que nasceria, quando caísse dura como um fruto maduro. Quando estivesse nutrida de coragem.

Certa ansiedade tomava-lhe o estômago. Ela esperava pela vida do nascer só, depois de ter tocado o fundo do útero. Arrepiava-lhe a sensação quase palpável da completude finita. Da solidão amenizada, boiando em liquido amniótico. Do quase respirar o ar que não se divide.

Ela nasceria, sim, ela nasceria. 
Para depois fecundar-se novamente, nos avessos de si mesma.