terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Ensueños (ou Sonhos de ouvidos despertos)



Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos

Foi então ali, no meio daquele concerto, por entre as notas melódicas e tristes do piano argentino. Por entre aquelas notas que cantavam belezas sutis e mistérios da natureza, fazendo chuva dentro do meu peito. Foi ali entre os rostos despreocupados e estrangeiros que fiz a minha prece em silêncio, e curvei-me diante das partituras e incógnitas que tomavam conta da pequena sala do Museu Manuel de Falla.

E foi ali que ele chegou mais uma vez, inundando-me com a brisa gelada daquela noite de estrelas. Eu estava lá, com o corpo desprotegido pelo dia leve. Com os ouvidos mansos e as mãos frias. E assim ele chegou de novo, invadindo-me com o seu tempo sem tempo. Com o tempo de um amor que não se esvai em anos. Com a beleza etérea do que não se vê em matéria.

Chegou à vontade como um velho conhecido, esparramando-se pelos dedos que tocavam as teclas melodiosas. De novo ele, de novo e sempre. Ele, aquele amor de águas fartas e geladas. Amor que se misturava com correntes quentes, águas salgadas, estrelas do mar. Aquele amor deserto, de areias escaldantes e grandes árvores verdes, das quais caem os frutos maduros que me alimentam nos vastos espaços vazios. Aquele amor pássaro de asas grandes, que sobrevoa os dias fazendo sombra em meus ombros.

Os temas tristes passavam pelas mãos cuidadosas que conduziam o piano, e adentravam meu peito em lembranças vivas. Experimentar uma grandiosidade que não se pode reter é uma dádiva, eu bem sabia. Uma dádiva ousada, e arredia demais para ser tocada por mãos demasiadamente humanas.

Eu sentia sua presença rarefeita, em todos os poros abertos. E podia acariciá-la por entre os dedos, saboreá-la no próprio corpo, roçar as notas musicais suspensas no espaço. Sentir o gosto bom de nunca mais, o gozo que não nos devolve mais os mesmos. Que escorre ligeiro para o espaço do indizível.

Um presente adornado com as mais belas cores, nunca vistas por olhos de gente. Um prazer de transcendências que não se retém, e nem se vê crescer com a linearidade dos fatos. Um amor de música tocada com os dedos da alma, de contemplação muda de quem observa pequenas mágicas.

A música inflou meu peito. Não cabia mais nada ali, até o expirar das notas presas na memória – que saiam, uma a uma, a ganhar a imensidão desconhecida. E assim eu aspirava música, mais e mais, num vai-e-vem que aquecia as narinas. E ansiava, de novo, pelo gozo de nunca mais.

Eu queria que ele pousasse sobre mim e que voasse livre, com as suas asas abertas e fugidias. Queria sentir o sopro de suas asas batendo, fazendo vento nos meus cabelos cacheados. Eu desejava o pássaro sem corpo, e assim deixava a música passear pelos meus orifícios, e voltar mansa para os acordes do tempo. 

Voa música, voa em arrepios surdos, em tempos suspensos, em sonhos perdidos para sempre. Em sonhos vivos de coração refeito, repleto de ausências e magnitudes arraigadas na pele desperta.

Ensueños, era o que tocava. 
Dentro e fora de mim. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pequenas passagens obscuras

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos




Ela não era pessoa que precisasse ser lembrada de que dentro de tudo há um poço escuro. 
De que dentro da carne há o sangue, de que dentro da pele existem veias verdes, de que dentro dos pulmões dança um catarro espesso e amarelo - num vai e vem de fluídos, entranhas, tripas, secreções.

Ela não precisava ser lembrada de que dentro do peito há um espaço obscuro, tudo dentro de tudo, circuito incessante de matéria prima, de lodo de fundo de rio, de cheiro forte e inebriante de arder as narinas.

Muco, esterco, húmus, sangue, barro, esperma, gozo. Vida que lateja no asco, vômito que se come de novo, pulso que vai e volta mutante, prazer que nunca mais é o mesmo. Vida que se move em diferentes formas, respiros ofegantes em diferentes instâncias de nós mesmos, vida-vivida em dimensões invisíveis, em esferas intocáveis, em impulso primordial.

Ela não precisava ser lembrada de que há o fim, e de que somos seres incompletos, lindamente avessados em perversões, antagonismos, paradoxos e antropofagias da própria carne.

Ela olhava-se inteira com sua visão trêmula. Sabia-se finita e cheia de vida por baixo dos tecidos estranhos que lhe cobriam a pele. Um dia chegaria, de fato, a dormência de tudo que ela conhecera assim, tão rápido, nessa pressa do tempo martelado de se abrir os olhos, e fechá-los novamente.

Será que ela guardaria tudo que vira assim, nessa miragem da própria vida? Será que os anos lhe dariam a possibilidade de guardar as sensações experimentadas? O ego, céus, será que restará um pouco do ego depois de todo o percurso de fundo de rio?

Ela mergulhava no medo sem resposta, tentando entender o que não entendia com a sua parca racionalidade. Ela, que tocava o avesso, assustava-se com aquilo que jamais poderia tocar. Não lhe assustavam as estranhezas, o outro, os sentires, os excrementos, as repugnâncias e tudo que emanasse da vida. Mas era menina pequena diante de tudo que não era vida. Talvez ainda não tivesse aprendido a amar a não-vida como o único caminho possível. Talvez ainda não tivesse aprendido a gozar as suas pequenas mortes, e louvar a grande passagem desconhecida.  

Ela agarrava-se na terra, buscava o corpo do outro como um porto seguro de existir em matéria, percorria a solidez que fincasse seus pés em pouso firme. E lastimava, perdida, por saber que todos os artifícios eram incapazes de impedir o imprevisto fatal, para o qual não havia preparo nem companhia. O imprevisto que era o presente da própria vida, a coroa, o desfecho, a transformação. Encolhia-se, fugindo em pensamentos. Vivendo o momento presente em intensidades cruas e vorazes.  
.....

Mas não é que no fundo, bem lá no fundo, junto com o medo grande, ela achava bonita essa coisa toda de vida e morte? 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Para mim.


Por Silvia Badim

Mais um ciclo, ciclo vermelho de 35. 
Ciclo que chega quente de desafios e intensidades sem rosto. 
Ciclo que me conta que o tempo é velho, que o tempo é novo, que o tempo é tempo de se fazer inteira. Abro os braços para o novo, desnuda e de pernas bambas. 
Que venha, que venha o que for para chegar. 
E que venha vivo. 
Axé.
Desenho encadernado de Ana Vasconcellos

Recebi ricos presentes das amadas Kalu Brum e Pérola Boudakian, que aqui registro. 
Presentes que enaltecem, que falam com a alma e me abraçam macios. 
Obrigada minhas queridas, por tudo. Essa troca é que faz tudo valer a pena. 


Por Kalu Brum

Ela me revelou as entranhas
Tão estranhas quanto as minhas
Pegamos a caneta e escrevemos
Com o sangue pulsante de nós
Segredos das sombras
Da fêmea aprisionada

Nos libertamos das amarras
Voamos em direções diferentes
Complementares colhendo
No orvalho da manha
Cores infinitas

Ela tem 35
3 o numero de quem se busca no alicerce sagrado
5 a mudança que se manifesta no corpo e na alma
Soma o 8, o infinito que nos move

Que nesta nova jornada
Vc encontre a leveza
O assovio da alma
Que a vida seja doce e atroz
Como vc é


Te amo, Sil, 
ô Sil da vida de tanta gente.

------- 

Por Pérola Boudakian

Ela tem alma pulsante
Uma coisa de entranhas
De inteireza
De estranhamento
Feito a vida que dá e toma
Refaz, ressurge e faz ajoelhar
Um não sei o quê de dor
De amor, de reviravolta
De entrega
De sutilezas
De percorrer o corpo
E arrepiar a alma
É assim.
É feliz quando dá
Chora quando pode
É pessoa-mulher: inteira, verdadeira, dolorida.
Só assim que é possível.
Transformada e do avesso
Acariciando os sonhos
E brincando com o medo.
Pessoa-mulher: te desejo a felicidade fugaz de ser inteira e verdadeira
Parabéns!!!



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Resta-nos

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos



Resta-nos, enfim, essa coragem de ser pequena, essa coragem de seguir em frente. Resta-nos tantas coisas, tantas belezas e espantos diante da vida, tantos momentos para serem colhidos com amor, tantas liberdades ainda sem nome. Tantos dias que não foram escritos no calendário, tantos meses perdidos nos anos que nos cobrirão em ondas de mar. Resta-nos essa terra fértil desabrigada, um lugar por vir, um lugar que estará lá quando abrirmos os olhos novamente. 

Resta-nos tudo que foi e tudo que ainda será, tudo que poderá florescer do que fomos, tudo que nunca saberemos que poderia ser. Tudo que construímos inteiras, tudo que desmoronou em ruínas, tudo que ainda sopra por dentro em redemoinho de folhas verdes.  

Resta-nos, por fim, o que resplande nas noites de silêncio, quando a lua amarela sorri e nos conta baixinho:

 - acreditem no segredo. 




domingo, 30 de outubro de 2011

Assombros e escombros

Por Silvia Badim
Escultura de Ana Vasconcellos







Talvez você não saiba nunca, porque fui eu quem quis. Fui eu que andei, fui eu que rompi, fui eu que tomei a iniciativa de irmos para qualquer canto além do nosso - esse nosso canto por tanto anos protegido das tempestades lá de fora. Esse canto inventado que tanto nos abrigou, escondido embaixo da sombra da árvore que cresceu enquanto dormíamos. A árvore que cresceu em silêncio e cobriu a casa, que invadiu o teto e deixou suas folhas espalhadas pelos nossos cômodos apertados, por entre roupas e tapetes amarrotados com pêlos de cachorro e barulhos de criança.

E foi assim de repente que tudo ruiu, foi de repente e durou tanto. Foi naquele dia, naquele instante, naquele ano em que não mais chegou a primavera e a gente viveu um outono sem fim. O longo outono não fazia inverno, não havia frio gelado e depois primavera, não havia mais ciclo de flor. O outono era cinza e a gente dormia tanto, eram tantos sonhos e realidades, tantos pesadelos de vida e morte, tantas metades desconjuntadas. Noites imensas que não se faziam dias.

Eu fechava os olhos e no escuro procurava os seus pés junto aos meus, que me beijavam macios. Eles estavam lá, quase inertes, e respondiam ao meu medo. Eles também tremiam. E eu desejava com ardor um acordar que não vinha, um acordar de cores vibrantes e frutas maduras. Mas não tinha primavera, nem sequer inverno. Não havia cheiro de flor nem vento nem jardim colorido. A vida não renascia, não passava o tempo gestado, não havia proximidade de parto possível. Era seco e doía, doía, comprimindo o coração por entre as paredes de uma passagem que não se abria.

Foi então que o meu despertador que tocou. Sim, ele sempre toca, com aquela música que você tanto conhece. E eu sempre alerta aos toques de despertar. Era sempre eu que lhe tirava da cama com beijos corridos, resistindo ao seu abraço que me convidava para afundar a cabeça nos lençóis e perder a hora. Mas eu acordei, eu tinha que levantar, as rachaduras cresciam nas paredes e pingavam água armazenada, estava úmido e faziam-se fungos doentes. Verde musgo que entrava pelo nariz e alcançava o corpo dormente, que subia numa tontura circular que asfixiava e sussurrava aos meus ouvidos: acorde.

Acordada de pé e desperta eu morria, olhando a vida que amanhecia com a dor de não caber mais em lugar algum. Com a claridade quase insuportável aos meus olhos tanto tempo incapazes de ver. E foi então que eu vi. A árvore havia crescido torta, e agora eu enxergava a sua postura envergada, consumida pela força dos ventos. Ela balançava de um lado para o outro, suplicando para ir ao chão e descansar para nunca mais.

Parei em frente à árvore, carcaça da beleza que se esvaia no tempo martelado de poeira. Fraca, com os galhos magros, ela me olhava com olhos pedintes, chorando sua seiva já escassa. Eu nunca dantes tinha ouvido a língua das árvores, a língua direta e inebriante das árvores. Abracei seu tronco áspero e, emocionada, entendi o seu suplício. Ela queria ir. Era hora de deixar o que não se podia mais sustentar.

E eu tive que ajudá-la a ir, fui eu que cortei seus galhos e arranquei as poucas raízes que ainda se agarravam ao solo. Sim, foram as minhas unhas que ficaram cobertas de barro vermelho, fui eu que chorei a dor de cortá-la com as minhas próprias mãos assombradas diante da morte. Fui eu que juntei os pedaços e caminhei pelos escombros, fui eu que destrocei e me perdi no meio de tantos pedaços disformes. Foram as minhas pernas lascadas de farpas de pingaram sangue, foi assim, fui eu que usei o machado e eu não sabia.

E sem saber eu carreguei a dor como um fardo pesado, um fardo tão meu e tão nosso, um fardo que eu haveria de carregar para o resto dos dias. Fui eu que matei árvore, sim, fui eu que cortei a nossa árvore em meio ao sangue e as lágrimas de seiva. E fui eu que tive que te dar a notícia da morte, fui eu que te contei e ouvi seu choro surdo de tristeza. Fui eu que segurei seu corpo cambaleante e te abracei no vazio, desejando que não houvesse mais morte nem fim nem nada que te fizesse sentir aquela dor grave alastrada por dentro.

Mas havia a morte, grande e volumosa como fato consumado. E era preciso força para velar o corpo morto, para fazer o rito de passagem. Era preciso seguir em frente sem a sombra da árvore, sem o canto escondido, sem o que era de nós enquanto dormíamos. Sem tudo que já havia sido e não mais poderia ser.

Juntos derrubamos os muros e acendemos a fogueira, queimamos tudo em pó e tudo se foi, tudo que era. A gente mergulhou no desconhecido, sim, vertiginosamente, cada qual cumprindo a sua coragem. Sobrou apenas o pó cinza e o horizonte aberto que se seguiu a tudo aquilo, o pó mágico que guardamos para os novos tempos, fértil de amor desabrigado.

E foi amor tudo que sobrou, um amor grande e tão nosso, pronto para ser espalhado em busca de novas primaveras. E que se façam flores, renascidas, vivas, coloridas.
Até que.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Velada

Por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos






Naquele dia ela apagou as luzes e velou o seu cansaço.

Naquele dia as pernas bambas teceram redes nas almofadas, e sua cabeça acomodou-se no vazio. Seus olhos despertos ficaram baixos, olhando em silêncio o escuro da madrugada.

Ela velou a sua dor.

Cantou suave uma melodia guardada na memória, de algum tempo distante. Juntou flores e jogou no ar aromas de beleza, para enfeitar seu rosto triste. Para disfarçar as olheiras que cresciam como dois buracos desconhecidos, e as respostas em suspenso que nunca chegavam.

Ela velou sua incompreensão.

Pisou leve pela casa, os pés no chão frio, os ouvidos atentos para os barulhos da noite. Um chá quente, um casaco velho, os ponteiros do relógio tilintando na cozinha. O sono que não vinha, os cachorros acomodados embaixo da mesa no seu roncar despreocupado. Ela seguiu a rota das horas em frente a si mesma, parada imóvel no tempo dos minutos. Naqueles mesmos minutos em que nada vinha, e o vazio se erguia enorme pelas horas que já somavam-se dias.

Velou a sua própria incompletude, com uma obstinação teimosa de quem ainda acredita.

Um dia, quem sabe, as luzes desceriam a montanha e invadiriam a sua sala de janelas abertas, fazendo sentido. Até lá, ela velaria atenciosa esse tanto que não se encaixava, e que queimava por dentro como pedras incandescentes colocadas na fogueira de si mesma. Ela havia acendido o fogo, e o alimentado com seu vento devastador. "Não havia mais volta", ela pensava ao ver as pedras consumirem-se pelas chamas revoltas. Sim, não havia mais volta. Agora era o fogo de nunca mais.  

Ela mesma havia colocado, cuidadosamente, uma por uma das suas pedras para serem consumidas pelas brasas vermelhas, até transformarem-se em algo denso e condensado pelo calor que vinha de dentro.  Suas pedras, todas elas, guardadas com esmero ao longo de seu caminhar de rotas falhas. Todas elas derretidas na fogueira que desfigurava, e deixava apenas o preto carvão brilhante em pedaços mutáveis.

Era preciso tempo, e ela o velava. Tempo, o maior dos deuses de seu altar. O orixá que guardava seus tesouros transformados, e os ensinamentos que haveriam de brotar nas terras férteis. Tempo, velho, tempo, novo, tempo.

Que se queime, que se transforme - ela velava. 
Até que.   

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

extravasamentos


por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos





Eu fiquei buscando um modo de extravasar aquela intensidade, aquela intensidade que queimava desde a semana passada, aquela intensidade que surgiu de algum lugar da memória do corpo, eu busquei sem trégua e com algum pesar, eu busquei.
E nessa busca eu fui assim, devagarinho, acostumando-me com as minhas novas roupas, com aquele novo jeito que eu não sabia que tinha, com a velha nova face desconhecida, eu fui. Fui direta e profunda, sem medo de mergulhar, fui seguindo as pistas que aquela noite me deixara assim, sem mais, junto com a ausência vazia do dia corrido que se seguiu a tudo aquilo, eu fui.
Não era você, não era só você, era eu no meio de tudo aquilo, era eu assim despida depois de tanto tempo de dor, era eu assim enfrentando os novos tempos de estar à flor da pele sem escudos, era eu sem saber dosar mais nada, era eu no meio da correnteza de mim mesma. Sim, também teve você, a gente dançou junto, teve você mas não foi só isso, foi algum destempero de estar assim: latente, sem controle de racionalidade, pessoa de lembranças de outras pessoas cravadas no peito e sem porto de chegada, pessoa de anos de acúmulo, pessoa assim latejada.
Depois de tanto tempo construindo barreiras e muros intransponíveis, arquitetando proteções para conter as águas, as minhas águas sempre tão fartas de sentires, eu quebrei tudo, simplesmente, quebrei sem olhar para trás, joguei tudo fora, todo o amontoado de proteções, joguei tudo de uma vez só, e tudo se perdeu para nunca mais. E que frio percorria a espinha. Era muita vida, era muita água, e eu a nadar no meio da correnteza sem bóia nem nada, sem barco, sem esteio, sem uma mísera máscara, nada. Era eu e toda aquela vida.
Aí teve você, aquele encontro bom, teve você e eu no meio daquelas águas revoltas. Teve você e eu sem saber mais nada. Eu não soube mesmo, não soube dizer ou explicar, e eu não queria palavras concatenadas, eu só queria sentir. E eu senti. Senti a mim mesma, senti o feminino sem reservas, senti a veia pulsando por algo mais, senti seu corpo tão quente e tão branco junto ao meu, senti seu sorriso tímido e tão pulsante, senti tudo de uma só vez e eu não soube.
Eu estava mergulhada e assim eu fui quando a semana seguiu, assim eu te procurei quando nada fazia sentido, assim eu te escrevi sem quaisquer pretensões a não ser extravasar o muito que queimava a pele. Queimou e eu segui, eu enfrentei o fogo, e foi tão bom. Foi bom andar tão cheia de vida, foi bom olhar para mim só e despida, foi bom.
Tudo vem acontecendo muito rápido nesses tempos de 2011, faz apenas uma semana e já faz tanto tempo. Foram tantos cigarros, tantos copos cheios e vazios, tanta gente que passou por mim e eu andei. Andei até chegar a meses, percorri até fazerem-se anos e eu ainda estou aqui de pé e tão viva. E tudo tão bom apesar do fogo que ainda arde, apesar de não saber o que fazer com tanta vida, é tudo tão livre e tão bom.
Alguns confetes coloridos me enfeitaram a face, e sucederam-se mais tantas coisas sem voz e sem quaisquer explicações que eu vou me acostumando a andar assim e não saber, apenas deixar-me guiar pelos sentidos que assolam a racionalidade. Agora eu já não me perco tanto, a minha velha nova face me é mais familiar, eu equilibro um pouco o destempero, eu estou firme. 
O tempo brinca de ser grande quando corre tão pequeno pelos dias, e eu estou aqui tão repleta de gente e tão repleta de mim, tão fluída nesse meio do caminho embolado e intenso. Intensa assim eu sigo com mais coragem, com mais vontade, com mais vida e te falo que está tudo bem, está tudo cheio e ainda restam muitos cigarros com sabor de amor pelo desconhecido. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Latejada

Por Renata Penna e Silvia Badim
Foto montagem de Ana Vasconcellos




Essa foi então a minha procura, eu fiquei buscando uma palavra – uma palavra perfeita para te dizer baixinho no meio da madrugada quando não houvesse mais ninguém, naquela hora silenciosa quando lá fora só existisse mesmo paradeza e escuridão, e então eu pudesse dizer sem descuido e ainda cultivando um fiapo de esperança e quem sabe até mesmo amor, quem sabe. E essa palavra escondida eu busquei com um quase desespero e por todos os lugares, eu busquei nas nossas noites de conversa e lua cheia e gargalhada até nascer o sol, eu busquei nos nossos abraços apertados sentindo a respiração, eu busquei nas tuas mãos bagunçando os meus cabelos cacheados e nas minhas mãos contornando divertidas o teu rosto tão cheio de sorriso, eu busquei nas nossas tardes de lago e pôr-do-sol, de cafés e andanças sem rumo, eu busquei até mesmo nos teus bilhetes apressados e nas minhas cartas intermináveis dizendo tudo sem dizer coisa nenhuma, eu busquei – acredita em mim, eu busquei até onde não sabia que se podia chegar sem morrer um bocado, eu busquei. Fiquei achando que ali residia a solução, e que então seria tudo definitivo, que então a gente encontraria a resposta e a cura e o respiro que andava querendo tanto, mas no fim das contas. Continuou tudo como estava, do mesmo jeito, e no fim do dia ainda doía tanto.

Doía sem remédio, e então eu andei. Andei por léguas sem pausas, por caminhos longos e tortuosos que me contavam segredos sobre os meus mergulhos, e sobre os nossos mergulhos em universos divididos. Por desvios que me contavam dessas dores brotadas das escolhas de quem vive assim, com o coração na ponta dos dedos. Foi então que eu soube, eu soube como uma luz que desce e aquece o peito. Uma verdade silenciosa, um sopro generoso, um sussurro de consolo. Eu não sei viver pouco, ou sentir pouco. Querer pouco. Preciso da entrega sem reservas, das profundezas, daquele espaço partilhado que a gente não revela ao mundo lá fora.  Gosto de adentrar o que encontro nesse mundo onde as sensações me dominam. Quase um vício que aprendo a conviver com. Foi então que eu soube que é preciso colher as dores que vem junto com o que ele me traz de bom, os tombos duros e grandes de quem vive à beira de. Eu aprendi, e eu acolho.  E sorrio ao pensar que eles valem à pena, porque decorrem dos momentos em que eu pude sentir de novo, e com isso deixar a vida se espalhar densa por onde corre o rio que vai dar no mar. Sim, eu preciso das águas fartas. 

Eu andei tanto, por tantas voltas, e de novo cheguei até você. Depois de ter percorrido outras paragens, de ter me embriagado por noites claras e cheias, de ter me perdido por rostos desconhecidos, eu entendo. Entendo que você topou ir comigo lá no fundo, que você topou, que você prendeu a respiração e foi comigo até o fundo do mar. Que você estava lá e eu te via. Que eu tinha medo de sair desse lugar, que eu tinha medo de você ir embora quando partiu para sua jornada longínqua. Depois de ter desculpado o destino, de ter te olhado tanto e de novo, eu volto para esse buraco vazio onde estão os sentimentos que você guardou, onde estão os meus sentimentos agigantados pelo tempo, onde moram os nossos sentires sem rumo e que respiram sem ar.

Volto para esse mesmo lugar onde eu não encontro a palavra que lateja, onde eu ainda estou nua com as mãos enlaçadas às suas. Volto para dizer que aprendi a deixar doer, e que as dores são adubo para os novos tempos. E esses novos tempos nascem do que eu fui nas noites brancas de lua que dividimos arrepiadas. Assim, sem mais, eles nascem, e você nasce de novo, a cada dia, latejada. E eu não tenho mais medo. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Vento livre

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos


Não se pode encapsular o amor. 


O amor é vento livre, que assola as planícies com sopros desgovernados. Que venta montanhas e cordilheiras em uivos surdos. Que carrega as águas que deslizam fortes pela cachoeira. O amor é vento que nasce pequeno, e sopra sem cessar até que possamos tirar os pés do chão. 

Não se pode encapsular o vento. A terra do amor é uma terra sem porto. O amor não se aporta, é navio sem âncora, conto sem ponto. Apenas se compartilha, se dissipa, se perde em si mesmo. Morre e renasce em diferentes formas. Uma, duas, dez, mil formas que enlaçam os corações desavisados.

O amor não cabe em nossas mãos, ele escorrega e alcança os ossos. Adentra a pele, perfura os vasos, e quando chega à medula já é outra coisa. É matéria prima do sangue, primo-irmão das células brancas e vermelhas. Mistura-se entranhado nas veias, e pulsa em diferentes tonalidades até ser expirado em ar quente pelos pulmões. O amor é a expiração que alcança o universo, em diferentes partículas. É o quente e o frio, o ar que volta para dentro para inflar a vida. O que é expelido para alcançar a morte.

Não se pode encapsular o ar. No momento em que tentamos colocá-lo dentro da garrafa, ele já é outra substância. O amor se transmuta fluído, se camufla entre desvarios, corre em passos largos para alcançar o horizonte que não tem endereço. 

Não se pode reter o vento. Diante da ventania não há nada que se possa fazer, e então sentamos quietos, com os cabelos soltos e a pele em poros abertos. Com os olhos vidrados e as mãos em prece, para acolher o mistério: o amor pode percorrer o indizível.

E com sua fala sem voz, nos conta segredos que não se fixam na memória. Segredos que nos espantam, e transbordam para além do que podemos lembrar com raciocínio linear. O amor é tesouro que juntamos, peça por peça, em sentimentos acumulados desde as primeiras sensações de nascer em si mesmo. O amor é tesouro de sentir, e não há baú capaz de abrigar a riqueza conquistada. O amor não tem tampa, molde, forma, espaço apertado. O espaço do amor é o espaço do mundo. 

Por vezes vem a agonia, e queremos prender o amor em alianças, papéis, regras, pílulas e tantos certos e errados. Ritos que celebram, símbolos que sacramentam, poderes de ditar ordens, remédios para aliviar a dor e evitar ameaças. Crenças de que o amor pode ser fincado no chão de terra, pode ser embalsamado pela casa construída, pode ser tijolo de pedra com cimento em cima. Crença de que o amor se possui, e se dirige.

Mas o amor é teimoso, e sua teimosia corrói as cordas. Vibra eletrizante pelas camadas duras. O amor não tem dogmas. É reino sem lei, com o rei deposto.

O amor pode ser vivido com ou sem presença, com uma, duas, três, quem sabe quantas pessoas. O amor é generoso. Pode ser flor solitária que desabrocha no deserto, ou pode caber justo no espaço da partilha de dois. Pode se esparramar para além do que podemos contar nas mãos, pode transbordar e alcançar os corpos nus ou, quem sabe, pode nunca ser tocado com os lábios. 

O amor não tem gênero, não tem idade, não conhece etnias e credos. Não tem rótulos ou caixinhas com etiquetas. O amor não tem nome, sobrenome, família e descendência. E ri a todo tempo das regras inventadas, tão frágeis e comezinhas. Boas risadas que nos surpreendem quando, de repente, o peito sopra e o coração diz em silêncio latente: eu amo.

E a gente ama. Mesmo quando não quer, mesmo quando não pode. Mesmo quando tudo dá errado, quando existe medo, quando as barreiras se erguem tão grandes que não conseguimos ver o céu. A gente ama embaixo da aliança apertada, quando o papel falha, quando a regra diz não. Quando a gente se espanta pelo que não pode e, de repente, de ponta cabeça, sente as artérias grossas carregarem os mais delicados sentimentos.   

A gente ama mesmo quando não tem voz para dizer, quando é inviável, quando a distância é tanta que parece sonho. A gente ama quando a vida aperta e corremos para longe do susto. A gente ama mesmo quando foge. 

E o amor não tem vaidade exacerbada, não desfila em poses de fotografia. O amor não sai na foto. Esparrama-se pela cor azul e branca do céu, pelo preto e branco que se esvai em tons de cinza, pelo tempo que mancha a lembrança do papel. Pelo vestido que não serve mais, pelo arrepio que percorre a pele embaixo do casaco, pelo escuro dos olhos fechados.  

O amor se espalha para ser inventado muitas vezes, para ser descoberto um pouco a cada dia, para adquirir novas e impossíveis formas.

O amor é irmão da liberdade, e qualquer sapato lhe aperta os pés. 

Estejamos descalços, enfim. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Algumas Tréguas


por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos




Para uma menina no seu país inventado.

“Temos tréguas de paz”, pensava eu no decolar do avião que saia de Buenos Aires, e me trazia de volta para casa. 

A busca incessante pela completude de ser, talvez fosse permeada por momentos em que nada mais é necessário, além daquilo que abrigamos no peito no momento em que se respira. E nesse momento eu respirava feliz, e aliviada por aceitar-me finita e cheia de anseios que nunca se satisfariam.

“Aceitar minha própria incompletude talvez seja a senha que preciso para acessar os meus segredos de paz”, suspirava eu ao olhar a janela com suas paisagens de nuvens gordas. Um tapete branco, suspenso no ar, acompanhava meus sonhos acordados de viagem. E eu estava desperta para a minha pequena existência faltante.  

As novidades dos dias passados acalentavam-me a alma sempre ansiosa e sedenta por algo mais. Chegara, enfim, num lugar onde eu queria estar. Um lugar meu que se aventurava a estar só, e andar só, pelos desrumos de se trilhar um caminho tão íntimo.  

Um lugar que nascera de tantos tempos de se estar perdida, com o coração batendo fora do peito. Um lugar que emergiu lá de dentro do fundo do poço, aquele mesmo fundo do poço que a minha amiga Lélia Almeida* descreveu como um lugar úmido e próspero, capaz de nos revelar nossas obscuridades salvadoras. Onde a aridez de si mesmo é quase insuportável, mas nos revela a matéria prima de ser o que se é. E assim nos salva das mesmices e armadilhas construídas para que nos separemos da nossa vida mais profunda.

O vôo seguia desconfortável, mas dentro de mim estava quente e bom. Sentia-me livre e desculpava a mim mesma por tudo que nunca poderia ser. Por tudo que eu nunca poderia tocar e nunca poderia experimentar em tempo de vida.

As limitações, enfim, me davam um sentido. E aprendi: eu nunca poderei tê-las. E, ao não tê-las, aceito reduzir-me ao que encontro nesse caminho estranho de se andar com as próprias pernas. Tudo que colho tem sentido, porque é o que me cabe. E é libertador livrar-me de querer o mundo que nunca pode me caber inteiro.

As horas seguiam com avisos do piloto e comidas apressadas. Com um sorriso discreto no canto da boca, voei devolvendo ao universo azul da janela o que nunca poderia ter. E como retribuição pela minha teimosia de tantos tempos, ele me devolveu presentes possíveis de se tocar com as duas mãos. 

Enfim, parecia ter aprendido a escolher. A aceitar as perdas do que nunca é quando se escolhe. E a ganhar o que me oferta o caminho escolhido.

Nesses tempos de viagem, suas linhas chegaram-me tão conhecidas. As letras familiares contavam-me sobre o anseio de acertar o passo dentre as tantas oportunidades de ser, que não se desdobravam em realidade. Um anseio de ser livre, de não precisar, de poder se desenvolver plenamente rumo ao crescimento que se almeja.

Mas o que, enfim, se almeja? Quando seguimos um caminho visando um desfecho, somos sempre surpreendidos pelo desfecho que não chega. Ou pelo desfecho vai aparecendo diferente das nossas expectativas, com cores e tons que nos machucam os olhos. As cores cinzas das incertezas e dos desvios não combinam com o colorido de um lugar pleno de primavera, que desenhamos como a nossa trilha esperada.

Mas não seria esse, também, um modo de se vivenciar o caminho? Não seria o cinza, também, uma bela cor para colorir os céus de si mesma? Lembro-me do Guimarães Rosa, e da travessia de que ele fala tanto no Grande Sertão Veredas.  A travessia é um bálsamo, onde se colhe as grandes riquezas que nos levam a qualquer lugar. É nesse meio do caminho, embolado e cheio de areias movediças, que se dispõem para nós as maiores grandezas de qualquer percurso.  

E só se pode chegar inteiro quando se vive a travessia. Alerta para o fato de que, aquele lugar em que imaginávamos chegar, nunca será aquele em que aportaremos num futuro próximo ou distante. A gente atravessa um rio a nado, diria Guimarães, e vamos parar numa margem bem diferente da que se pensou antes de pisar nas águas. As águas têm vida própria.

E, para as pessoas que não aceitam soluções prontas e massificadas, o caminho é muito mais longo, e as paragens muito mais mutáveis e escorregadias. Muitas voltas e percursos por desertos, tempestades, terras de gelo e lugares sem nenhuma cor. Mas que nos trazem, a todo tempo, delicadezas escondidas em espinhos e ventos cortantes.

Se o caminho tem coração, ele pulsa. E se o caminho é seu, ele é rico em aprendizados, e ele é como deveria ser. Mesmo com as durezas e asperezas de se andar de ponta cabeça por tantos quilômetros. Mesmo com a tontura de se ter o sangue na altura dos olhos, a vista turva, e nenhuma certeza de onde se possa pisar em terra firme e dormir abrigada do frio.

Aqui de longe torço para que você se acolha com a devida generosidade. Que saiba perder para poder ganhar, que saiba se ouvir para poder escutar o que o destino lhe traz com as mãos cheias de flores. Que saiba aceitar os tempos duros, o fundo do poço, os dias de sede e boca seca em frente ao mar.

Aqui de longe torço para que a sua força cresça em coragem, para que seu fogo se espalhe em brasas de esperança, e para que novos tempos possam emergir para te fazer feliz com o que trazes para deixar no mundo, seja ele o que for. E como for.

Conte comigo para inventar caminhos e dividir atalhos mais brandos nessa urgência de ser o que se é.

* Oração do fundo do poço, de Lélia Almeida: 

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A dança de um


Das pensações da terra de Gaia.


Por Silvia Badim com sopros da menina do casarão. 


Desenho de Ana Vasconcellos






Chegou o momento em que só restava partir. Eu estava cansada, e um calor morno envolvia meus ombros. O dia era claro, daquela claridade de arder os olhos. E um frescor sem precedentes umedecia o vazio, apesar da seca que consumia tudo lá fora.

Não existia mais vida nas terras sem vento. Não havia música. E sem música, não há dança. 

Por vezes eu cantava, um lamento triste que lhe chegava aos ouvidos. Você ouvia, de longe, mas o eco não vinha. Era eu com a minha voz rouca, e o lamento grave. Eu queria dançar. 

Ensaiava os passos, e tentava sozinha conduzir a dança de dois. No improviso da minha dança desordenada, eu lhe convidava. Seguindo o pulso que vinha de dentro. O pulso do que dividíamos em segredo. Era muito, e era tanto. Mas você não dançava.

No seu sorriso distante, você se comovia pelo que tocávamos na imensidão aberta desse horizonte cor-de-rosa. E ao me tocar contava-me que sim, tudo existia, grande e disforme como aquilo que não tem nome, e que não pode ajustar-se à realidade que reduz. Não era possível ajustar-se a nada. Era leve e voava, sem lastro e sem pouso possível.   

Você acreditava em mim, e me concedia alguns minutos de dança no seu ritmo de um. Era o possível, e era o tempo que você me dava. O tempo presente do que não se realiza. Tempo de se querer mais, e não poder ter mais nada. Um tempo injusto.

Eu podia sentir a tristeza do que já se esvaia, do que voltava ao plano imaterial dos sentimentos em suspenso, mesmo antes da dança terminar. Era tudo tão triste e tão bonito, perfeito como tudo que não se toca com as mãos reais e frias. Nuvem colorida que nos acompanhava, onde quer que estivéssemos. Presentes e etéreos, em conexões mudas e dispersas pelos cantos que andávamos. Sempre um e outro, em cada canto. Dividindo nossa solidão impartilhável.

Eu encolhia a barriga para não apertar o seu espaço, e tentava acreditar que era possível aceitar a não dança como uma dança possível.

Mas eu quis desejar um pouco. Eu desejava. Uma dança leve, quase nada de tão delicada. Desejava que meu cavalo cavalgasse nas terras de dentro de mim, e que quase nenhuma guerra me escapasse pelos olhos. Que a vontade, toda ela, se deitasse em palavras até diminuir de intensidade e tamanho. E que eu, por determinação de mim, plainasse sob todo o relevo da geografia do meu desejo de vales e cachoeiras invisíveis.

Eu tive que soltar o cavalo. Um cavalo selvagem não sobrevive sem a liberdade de ir de encontro ao que deseja. Não há cachoeira a qual se possa controlar o fluxo, e os grandes vales jamais se tornam planícies.

Foi então que eu soube: eu não posso. Não, não mais. Eu não posso sustentar tamanha leveza. Eu sou humana ainda. Preciso da música dançada a dois. Do movimento que se solta pelo que faz sentido, feito a quatro pés e braços juntos, que não se recolhem antes da música terminar.

Quem sabe se eu prometesse esperar qualquer soma de dias com o sorriso de sempre e sem saudades. Quem sabe se parasse de doer à ausência muda, e as expectativas pudessem se transformar em flores. Quem sabe se eu pudesse viver pela metade, respirar em pedaços desconexos, me envolver em outros corpos sem carregar a sua presença silenciosa nas minhas extremidades. Mas essa não seria eu. Certamente, não seria eu.  

Eu preciso da música ritmada. Cantada, tocada em instrumentos vivos. Preciso poder desejar. Não posso mais estar contida no quadrado que você me dá. Preciso da resposta que chegue ainda quente, da continuidade palpável. Eu preciso ir além, espalhar-me solta e fluida pelos arredores, viver tocando o que existe por trás de. Mesmo que o que exista seja menor, tão menor, do que tudo que pode ser. Mas, é hora de ser. Qualquer coisa, mesmo que não seja.

Contenho as lágrimas. Não é mais possível alimentar-se de poucas migalhas, pois eu tenho fome. O estômago não pode mais digerir a si mesmo, queimando-se pelo ácido em excesso do que não vem. 

E tanta coisa eu ainda não sei. Não sei viver assim, leve no meio da fumaça que arde os olhos pelo que não se enxerga. No meio do labirinto sem pistas, tentando decifrar as tantas perguntas sem resposta.  Eu preciso pisar o chão, descansar sob as árvores com sombra fresca e água em abundância. Essas coisas bobas, você sabe. Que fazem todo sentido na minha andança no mundo dos homens. 

Eu não preciso de muito, não. Nessa etapa do caminho, sinto-me feliz e livre em apenas ser. E ser miúdo, dividir o tempo pequeno do que é grande. Sem peso ou amarras que nos façam doer as costas. E quero a liberdade de apenas viver, junto, o que existe porque é junto. E nada mais. O resto é resto, e o resto pode ser descartado porque não nos cabe. Formalidades, enredos, linearidade, nada disso nos cabe. Mas há de me caber o viver. Porque sem ele, não tem roupa nem comida quente. É estar sempre no frio da solidão, nua no gelo do ártico. 

Mas sabe, eu ainda acredito. Você conseguiu penetrar lá no fundo, na imensidão escura de mim. E lá está, na utopia do encontro, no entendimento profundo e quente que alivia a alma. Um lugar seu, só seu, bem guardado nas melhores lembranças do coração. Que me acompanhará e me dirá palavras bonitas, quando de repente eu olhar para o céu e lembrar que eu não estou só. 

Mas algo não se move mais. E eu preciso de movimento.
Preciso me libertar de onde sufoca pela completa ausência de ar. Eu preciso de vento. 

É, não consigo mais. Preciso juntar os dois pés ao meu lado e ir de encontro ao que for inteiro. Despeço-me ainda sem saudades da sua ausência. Pois sua presença invisível descansará risonha dentro dos meus olhos por longo tempo. Sua ausência longa, constante, imóvel se espalhou tão permitida dentro de mim, que agora ela é exalada com a respiração ofegante.

As portas estão abertas, eu sei. Não há cadeado ou chave. É só ir.
E então eu vou.