segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Uma prece

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos




Hoje eu rezo.
Meio sem querer, peço em palavras alentos de existência. 
Uma a uma, dando as mãos em prece.
Uma prece solitária, com a cabeça no travesseiro e os olhos fechados para sentir o escuro.

Que meu coração não saiba que um dia eu chorei por ele.
Que ele não escute um lamento sequer, pois os lamentos são efêmeros quando exteriorizados.
Que meus lamentos sejam silenciosos, contidos, latentes.
Que a minha solidão de hoje seja só minha, como um fruto que colho pelos acontecimentos.
Que a minha dúvida ande sempre paralela, arredia, sucumbente.
Que ele não saiba da sua importância, pois as importâncias são individuais e assustadoras.
Que eu consiga acertar o passo, ajeitar a face, conter os sentimentos.
Que a minha explosão possa se diluir, possa se dissipar antes da tempestade.
E a tempestade, se tiver que vir, que deixe a terra úmida para a próxima colheita.
Que meu amor possa vibrar, possa atingir.
Que ele seja forte para agüentar a humanidade, para assimilar os erros e suportar os acertos.
Que eu descubra que ser mulher é ser humano,
Que a vontade de chorar não passa,
Que a vontade de sorrir não passa,
Que a vontade não passa.
Que eu saiba sentir a sua falta,
E saiba respeitar os momentos da minha própria reclusão.
Que eu conheça as limitações, e tenha a paciência necessária para aceitá-las.
Que eu possa transformar o fim em novos começos,
A dor em possibilidades de novas flores estranhas. 

E que, sobretudo, como já aprendi,
“Meu largo canto vibre acima dos ódios e ressentimentos,
Das intrigas e vinganças,
Nos espaços infinitos”

Axé.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Adeus, Mãe

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

Eu queria que você me dissesse que tudo vai ficar bem, que vou poder experimentar novamente aquela sensação de entrega e acolhimento que algumas vezes vivi nos seus braços. Eu queria saber se você realmente foi capaz de me amar ou se mais uma vez lancei meu corpo para braços que me deixaram desmantelar.

As vezes eu sou pesada, talvez porque invista tanto na necessidade da leveza. Talvez porque eu queira ser tanto o ideal que eu tracei para mim que ele sempre parece estar a frente e longe de mim. Eu o persigo enquanto ele foge e me sinto só.

Eu queria apenas o silencio. Eu queria apenas rir com você e de alguma forma fazer sentido na sua vida. Mais uma vez me sinto abandonada neste mundo tendo que me virar sozinha.

Eu não me viro tão bem como as pessoas imaginam, você sabe. Eu vivo tropeçando nas quinas, errando as esquinas. Eu me sinto perdida a maioria das vezes. Talvez as coisas façam sentido nas palavras.

Eu queria apenas que você me embalasse e que me cantasse canções de ninar para fazer dormir esta parte impulsiva de mim. Eu não consegui chorar com a despedida, mas eu estava chorando enquanto dizia que estava tudo bem.

Não está tudo bem. Eu me sinto sozinha. Solidão é quando a gente não sabe se gosta muito da gente. Sabe, eu não sei se gosto tanto assim de ser eu mesma.

Eu escolhi isso. Eu sei. Fui eu quem pegou as roupas, arrumou a mala e esperou você chegar para bater a porta e dizer adeus. Eu queria que você dissesse que eu sou importante e me pedisse para ficar. Você me disse adeus e agora eu não sei para onde ir e nem em que colo chorar .Estou parada na porta da casa que já foi minha, me sentindo lançada no mundo. O mundo que sempre desejei e agora me amedronta.

Desculpe pela minha falta de coerência. Eu só sei ser poesia. Daquelas que brotam entre lágrimas e pulsos de vida.

Não me leve tão a sério. Eu coloco a lupa nos sentimentos porque parece que quando estão maiores fazem um sentido profético.

Eu parti, estou no mundo. Vou sentir saudades. Sei que em breve seremos apenas lembranças passageiras. Por hora ainda dói a partida. Ela tem cheiro de falha.

Você me avisou das dificuldades. Achei que eu ia dar conta. Nunca imaginei que o quarto que entraria seria tão alheio a minha razão. Ela simplesmente não opera lá.

Agora eu vou seguir, molhando-me na chuva e entre lágrimas e sóis, e deliciar me com a efemeridade do arco Iris.

Adeus, Mãe. Ainda te encontro dentro de mim.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Coragem de pés descalços

 Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

 
Ela estava cumprindo uma coragem.

Vestiu as botas guardadas no velho baú, e saiu rumo ao desconhecido que aparecia quando o silêncio lhe tomava o pensamento. Seguiu o caminho do sonho real de imagens e sentimentos, que pulavam coloridos no escuro dos olhos fechados.

No sonho estava parte fundante da realidade. O intangível que corporificava os seus anseios velados. O norte que brilhava sob a luz da lanterna, e lhe apontava a direção dos passos.

Apertou as botas firmes aos pés, e seguiu com a parcimônia de quem descobre como andar no escuro. A luz da lua era-lhe companheira. Por vezes aparecia forte, e por vezes sumia escorregadia por entre nuvens e trovoadas. Mas estava lá, firme, perene por trás das controvérsias do tempo.

E ela seguia a sua coragem. Às vezes muda trêmula de frio, às vezes falante de sons quentes. Cantarolando versos, esgarçando a garganta, soltando sorrisos largos ao vento. Esfregando os dedos, roendo unhas, investigando angústias. Tocando os muitos nós secretos incrustados na grande rocha perto do peito.

Ela andava os muitos rumos de sonhos. Quilômetros duros de enfrentamentos. Subidas e descidas de morros de dúvidas. Escaladas sem ar. As botas foram ficando sujas de barro grosso. Os dedos suados de pingos vermelhos. Os pés visitados por calos saltitantes de quem percorre lacunas.

Ela era ambiciosa. Queria a felicidade verdadeira, que se escondia por trás das armadilhas e abrigos fáceis. Que corria para longe das artificialidades e jogos de individualidades exacerbadas.

Ela queria o outro. O outro como parte importante de si própria. O outro inteiro, que ela precisava partilhar e incorporar para ser grande. O outro que eram outros insubstituíveis – cada qual com a sua importância indizível de ser. Cada qual completando-lhe e iluminando-lhe à sua maneira. E ela queria ser, o tanto que coubesse ser. Era possível ser tudo? Sim, ela era ambiciosa.

Armou a sua barraca na beira do rio que descia o enlevo. Tirou as botas e colocou os pés na água corrente. Era ela e o líquido doce que corria sem dono. Ela e o horizonte rosa do cerrado. Ela o apaixonamento inesperado pelo feminino que não sabia existir dentro de si.

Sentiu as suas ardências de febre de sol. Sua voracidade que não tinha alento na água corrente. Os muitos que lhe habitavam o coração. Anoiteceu.

Ela descalça pisou o chão de estrelas. A lua lhe sorriu disfarçadamente, e ela entregou ao espaço infinito as suas indagações. Com coragem para as lágrimas que pulavam de seus olhos cansados. Para a dor de querer o tudo que podia ser nada.

Acendeu a fogueira, e banhou-se da fumaça perfumada de folhas secas. Alimentou a esperança de viver pulsando o fogo sagrado. O fogo que lhe queimava por dentro, e lhe impulsionava a seguir a rota das estrelas.

Fechou os olhos para enxergar a realidade.
Com calor e coragem.





quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Para ex-terapeuta


Por: KaliDesenho: Ana Vasconcellos
Eu não quero despir minhas idiossincrasias e ficar nua e expondo minhas amarras corporais. Não quero pendurar na cadeira verde flácida que não me sustenta as meias partes de mim. Nem que você toque meu corpo.
Não quero deitar no chão e deixar meu coração aberto, exposto ao seu toque. Quero apenas sentar encolhida e dizer o quanto tudo isso está doendo aqui dentro. Não quero seu abraço, tão pouco sua voz que se força a ser meiga e acolhedora. Eu quero apenas que você sente e me ouça.
Sabe, quando te escolhi lá do céu e de novo agora eu queria aprender a ser amada e protegida. Eu só queria alguém que me protegesse profundamente das insanidades que me acomentem. Do meu medo de ser só, do meu pânico profundo de ser excluída.
Fui impedida de viver o meu direito de nascer. Privada do colo, do peito. Mas eu acho que eu escolhi isso. Escolhi essas feridas para que no caminho encontrasse o remédio, visse a mim mesma. Foi um plano meio doido  e doído que tracei para minha própria alma.
Eu tenho orgulho de ser eu. Por que só eu sei o quanto caminhei para chegar até aqui. Quantas vezes me perdi no amor, quantas vezes confiei cegamente nas pessoas e me espetei. Quantas vezes dividi  aquilo que eu sabia e me meti em terríveis enrascadas.
Eu sempre procurei alguém para acolher minhas estranhezas, para me amar apesar delas. Mas acho que eu mesma não consigo amar tantas delas. É difícil ser profunda e expandida além do mundo real. Pode ser um surto psicótico. Assim que chamam isso nesta terra?
Cansei de escolher as mães erradas e talvez galhos secos e mortos para me segurar na queda. Talvez por isso eu busque ajuda para, não mais querer lapidar com estacas as minhas arestas, mas acolher e encontrar a flexibilidade para ser feliz da maneira que eu sou.
Eu me senti abandonada e excluída. Já subi em mil palcos em que os aplausos eram silencio porque aquela que eu queria que aplaudisse era cega e surda.
Eu te vi fugir e se esconder, criar situações para na sua visão me proteger, mas que me feriu tão profundamente que neste momento me vejo aos pedaços, tentando entender o que o Universo quer me ensinar. A única resposta que me vem é sina. Escolhi o espelho de minha mãe uma outra que fez algo ainda muito mais dolorido. Isso porque eu sou capaz de sentir o amor que ela manifesta de sua forma, mas ainda sim, amor. Em você vejo apenas  um desejo de ajudar sem a capacidade de amar e acolher.
Voce nunca me acolheu. Em nenhuma de minhas situações reais de fragilidades profundas. Eu não sei quem você é. Eu não sei como esta história vai acabar. Só sei que eu não dou mais conta de me sentir assim e de novo, com coração aberto, feridas expostas e aquela que poderia com o calor das mãos amenizar a pulsão, ser aquela que futuca o tecido mais purulento.
Eu pensei, Mãe, que a gente podia ser amiga. Mais uma vez não foi possível. Mais uma vez eu fui largada no berçário frio sem peito ou colo e acolhida por uma Mãe da Mãe cheia de insanidades.
Talvez seja um teste para eu realmente questionar a missão da minha alma. E retornando para casa pensei em deixar tudo, como sempre fiz para que você pudesse ser plena em sua maternidade com a minha irmã. Penso como terminar este texto e não consigo. Dentro e fora de mim a menina chora, abraçada com seu ursinho, na tentativa de que as lagrimas saiam e curem as feridas remachucadas.