Desenho de Ana Vasconcellos
Repetia histórias mal contadas para si mesma.
Naqueles tempos, conseguiu olhar para a maquiagem que lhe transbordava em tons quentes. A pele avermelhada, acumulada com o passar dos anos, começava a descamar pelas chuvas fortes que resolveram lavar seu corpo. O hoje era frio de pingos espetados. E ela tinha sede.
Descamava. Puxava a rubra pele de borracha, que saia em pedaços grossos. Grossas heranças que se acoplaram ao que ela era hoje. E se dispersavam, uma a uma, pingando no chão lembranças e traços desconexos. Dores e angústias camufladas em pele de camaleão.
Esfregou o rosto, e enxergou os borrões sem lastro que pesavam o seu rosto de mulher de sorriso largo. Assustava-se consigo mesma. Mas o susto era bom. Era resgate de entranhas. Fitou o espelho, em pêlos nus. Ela queria ser o que era - mesmo que fosse a ausência de cores vibrantes. O cinza-chumbo por entre os dedos.
Sentia-se preparada para tocar o vazio. Com os olhos despertos para aceitar o que não via. Para abraçar a beleza crua do que escondia por trás de. Para saber-se ossos, carne e veias abertas. Coração pulsante de estranhezas e repugnâncias.
A pele vermelha rachava-lhe o corpo. Áspera, descamada, incômoda. Ela estava mutante. E não sabia o que enxergaria depois que toda a pele caísse em pedaços. Juntou os fragmentos já dispersos, e colocou-os junto à árvore do quintal de terra. Acendeu uma vela, e disse preces em línguas ancestrais. Preces que sequer compreendia com voz de razão. Rezou pela mutação. Pelo que deixava ir. Pelo novo sem nome que haveria de tomar-lhe o corpo.
Ajoelhou-se ainda nua, sob o céu que se abria em nuvens carregadas.
Ela estava viva.
Naqueles tempos, conseguiu olhar para a maquiagem que lhe transbordava em tons quentes. A pele avermelhada, acumulada com o passar dos anos, começava a descamar pelas chuvas fortes que resolveram lavar seu corpo. O hoje era frio de pingos espetados. E ela tinha sede.
Descamava. Puxava a rubra pele de borracha, que saia em pedaços grossos. Grossas heranças que se acoplaram ao que ela era hoje. E se dispersavam, uma a uma, pingando no chão lembranças e traços desconexos. Dores e angústias camufladas em pele de camaleão.
Esfregou o rosto, e enxergou os borrões sem lastro que pesavam o seu rosto de mulher de sorriso largo. Assustava-se consigo mesma. Mas o susto era bom. Era resgate de entranhas. Fitou o espelho, em pêlos nus. Ela queria ser o que era - mesmo que fosse a ausência de cores vibrantes. O cinza-chumbo por entre os dedos.
Sentia-se preparada para tocar o vazio. Com os olhos despertos para aceitar o que não via. Para abraçar a beleza crua do que escondia por trás de. Para saber-se ossos, carne e veias abertas. Coração pulsante de estranhezas e repugnâncias.
A pele vermelha rachava-lhe o corpo. Áspera, descamada, incômoda. Ela estava mutante. E não sabia o que enxergaria depois que toda a pele caísse em pedaços. Juntou os fragmentos já dispersos, e colocou-os junto à árvore do quintal de terra. Acendeu uma vela, e disse preces em línguas ancestrais. Preces que sequer compreendia com voz de razão. Rezou pela mutação. Pelo que deixava ir. Pelo novo sem nome que haveria de tomar-lhe o corpo.
Ajoelhou-se ainda nua, sob o céu que se abria em nuvens carregadas.
Ela estava viva.