sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Mutações

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


Repetia histórias mal contadas para si mesma.

Naqueles tempos, conseguiu olhar para a maquiagem que lhe transbordava em tons quentes. A pele avermelhada, acumulada com o passar dos anos, começava a descamar pelas chuvas fortes que resolveram lavar seu corpo. O hoje era frio de pingos espetados. E ela tinha sede.

Descamava. Puxava a rubra pele de borracha, que saia em pedaços grossos. Grossas heranças que se acoplaram ao que ela era hoje. E se dispersavam, uma a uma, pingando no chão lembranças e traços desconexos. Dores e angústias camufladas em pele de camaleão.

Esfregou o rosto, e enxergou os borrões sem lastro que pesavam o seu rosto de mulher de sorriso largo. Assustava-se consigo mesma. Mas o susto era bom. Era resgate de entranhas. Fitou o espelho, em pêlos nus. Ela queria ser o que era - mesmo que fosse a ausência de cores vibrantes. O cinza-chumbo por entre os dedos.

Sentia-se preparada para tocar o vazio. Com os olhos despertos para aceitar o que não via. Para abraçar a beleza crua do que escondia por trás de. Para saber-se ossos, carne e veias abertas. Coração pulsante de estranhezas e repugnâncias.   

A pele vermelha rachava-lhe o corpo. Áspera, descamada, incômoda. Ela estava mutante. E não sabia o que enxergaria depois que toda a pele caísse em pedaços. Juntou os fragmentos já dispersos, e colocou-os junto à árvore do quintal de terra. Acendeu uma vela, e disse preces em línguas ancestrais. Preces que sequer compreendia com voz de razão. Rezou pela mutação. Pelo que deixava ir. Pelo novo sem nome que haveria de tomar-lhe o corpo.

Ajoelhou-se ainda nua, sob o céu que se abria em nuvens carregadas.
Ela estava viva.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

De quedas e vazios

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos



Ela estava partida.

Enfim, havia chegado o momento. Ela se aproximou lentamente do abismo, e pisou o vazio do chão sem lastro. Um único passo, certeiro e fatal, que a sugou para dentro da queda. Um único segundo e ela estava lá, inteira, deslizando pelo vazio sem começo nem fim. Distante das bandeiras que marcavam o caminho de volta. 

Arrepiou-se - em poros abertos. O vento lhe beijava os cabelos, e ela caia. Escorregava as mãos pelo limo verde, e sentia o ar frio adentrar-lhe as entranhas. Ainda tonta pela vertigem da queda. Ainda perdida pelo buraco que lhe comia a consciência. 

Percorria-lhe o corpo apenas a leveza dos pés descalços. A densidade da matéria solta no ar. O medo de não saber onde alcançaria o chão novamente. Tudo era novo. Tudo escuro, resplandecendo em novas possibilidades de si mesma. 

Era hora de deixar sair o que escondia dentro do casulo. De se desapegar do que era só dela, perdido em pensamentos de labirinto. Dos segredos que murmuravam em suas veias, e feriam-lhe o coração assustado. O medo era gelado.

Era hora de abrir as suas asas de borboletas, e plainar sobre a imensidão disforme que lhe aparecia diante dos olhos. Amenizar a queda com as asas abertas. Saborear o desconcerto com gosto de liberdade.

Mas ela só conseguia arranhar as unhas no verde escorregadio. Ainda presa pela sensação de pertencer à terra firme. Sentia-se flutuar, e sorria da sua fluidez dispersa. Perplexa pela grandeza de não saber. O coração batendo na boca. A voz rouca engolindo sílabas de ar. A saliva concentrada na língua perdida por entre os dentes.

A vida em tons de cinza. Nem cá, nem lá.
Corpo de nuvens.

sábado, 6 de novembro de 2010

Vertigens

Por Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

Quando se aproximou do abismo, sentiu a vertigem tomar-lhe o corpo. Aquela tontura costumeira, o formigamento quase elétrico, o frio a lhe percorrer a espinha. Estava à beira de, pairando sobre o precipício de si mesma. Tudo amplo e vasto, disforme, sem começo nem fim. Ela sentou-se na ponta do grande penhasco, devastada pela sensação de dormência e medo do limite em que podia fincar seus pés no chão.

Tudo teve início quando ela resolveu entrar naquele buraco fosco. Desbravar o mato que cobria a entrada, tomar banho de cachoeira de inundar-lhe o ventre. Dar o passo em direção ao caminho de nuvens que jamais ousara adentrar. E agora ela estava lá dentro. Tomada pelo impulso inevitável de apenas seguir. Seguir aquilo que se é. Tudo era urgente, tudo era mais. Era hora da travessia, e ela sabia que precisava enfrentar suas tempestades. Sozinha.

Ela sentia o vento que soprava no escuro. A sensação de vertigem era companheira de longa data. Alimentava-a dentro de si, desde que se lembrava caminhar com as próprias pernas. A sensação de quase ir. De tocar e recuar. De sentir o impulso de pular, mas agarrar-se ao chão conhecido que lhe esquentava os pés. De contentar-se com sentir intenso que nunca vai. Viciou-se, adicta ao formigamento sem nome. Viva presa e viva solta.

Amarrou uma corda aos pés para não ir longe. Para ter certeza de que sempre se lembraria do caminho de volta. Mas naquele dia, sentada à beira do precipício, sentiu pela primeira vez a vontade desmedida de cortar a corda. De se deixar ir, de romper o ciclo vertiginoso do quase. De pular e esquecer o caminho de volta.

Era preciso confiar. E ela ainda era menina desconfiada. Vencia-se um pouco a cada dia, ouvindo o vento forte lhe contar sobre o fluxo da vida. O fluxo de si própria, que se esticava e enfrentava a corda que já mostrava sinais de esgarçamento.

Namorava o escuro com vontade de queda. Queda livre.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pinóquio

por: Kali
Desenho: Ana

Estava no céu celestial perfeito, desembrulhando os papéis azuis das maças. Decidiu nascer quando viu refletido no espelho de si mesma o amor entre dois jovens. Talvez ela tenha chegado depois do gozo urgente na escada do prédio. Escura, sombria, misteriosa entrada naquelas entranhas adolescentes.

Nada sabe sobre o tempo que ficou guardada na concha, esperando a hora da abertura para a revelação da pérola. Apenas que causava em sua mãe uma vontade de pipoca e chiclete. No céu só havia maças.

Seu segundo desembarque foi igualmente sem poesia. Cortaram o ventre da pequena para tirar na marra aquela que tentava nascer. Em viagens internas adormecida ela ainda sonhava com um pequeno orifício que tentava se encaixar e uma sensação de queda abrupta por ter sido retirada pelos pés.

O frio da madrugada que lembra a primeira separação. Ela tentou segurar na toalha da fria balança que revelava o peso, de início e para sempre de um corpo robusto. Quase quatro quilos de medo e choro. Onde estava o amor? Onde estavam os braços e seios que um dia ela imaginou? Agulhas, viradas abruptas, colírios cegantes.

Onde estava a poesia que vira lá de cima? Ela, depois de muito tempo, encontrou os seios. Mamava com volupia até tirar sangue da menina, que chorava e persistia. Ele regugitava e lhe diziam que estava doente. Deram-lhe um veneno que quase tirou-lhe a vida. O menino correu com ela e não dexou. Tantas vezes ela desejou profundamente ter deixado o placo antes que pudesse ficar em pé. ela sabia que não era essa sua história.

Durou tão pouco tempo a era do peito e colo. Antes de meio ano já estava entregue a comida deste mundo, que devorava com vontade na tentativa de que o estômago cheio preenchesse o coração que faltava um pedaço.

Antes que se desse conta, um outro ser ocupava seu berço, seus seios, os braços. Deixada na estrada descobriu que era um anjo e que anjos e humanos não tem uma relação plena.

Adentrou no mundo tecnológico das máquinas na tentativa de encontrar a fada madrinha. Ela sabia o que queria. Queria ser uma menina de verdade para que um dia a mãe pudesse lhe amar, de início e para sempre. Mergulhou profundamente em uma alagada cidade de memórias antigas. Diante da fada, congelou porque as águas tornaram frias demais com o passar dos anos e das eras glaciais.

Até que o sol veio a derreter e fazer chorar as águas internas. Saiu e encontrou um espelho. Aquele mesmo que vira antes de chegar enquanto saboreava sua maça. Diante da menina dos olhos da fada ela se viu menina de verdade. Olhou mais fundo e viu brilhantes sorridentes olhos cor de romã a lhe fitarem em gratidão. Viu seus próprios olhos a olharem na menina dos olhos da menina mãe.