quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Pequenas mortes

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos




Naquele dia ela acordou permeada por uma velha sensação conhecida. Uma sensação estranha, que sempre a faz correr com impulso de menina para se esconder embaixo da cama. Uma sensação de tormenta, que sempre a faz fugir em disparada como quem foge do espanto escuro do mistério. A morte.

Novamente ela morria sem aviso. Sem inscrição prévia, sem entendimento dos seus motivos avassaladores. Desesperou-se ao sentir a morte invadir-lhe o corpo, dando sinais de mutações ligeiras. Sentia-se tonta, sentia-se fluida, sentia-se espalhada no ar ao redor da cama. O coração batia forte, a vista escurecia, e ela morria. Emitia sons de silêncio. De desvarios de finais incompletos.

Morria nela mesma. Morria um pouco por querer viver demais. Pensou em tudo que amava com a intensidade da despedida. E tudo ganhou cores ainda mais brilhantes. Agarrou-se nos lençóis desarrumados, como quem agarra a âncora do navio que não quer partir. Fincou-se na cama com os pés enrolados na coberta. Assustava-lhe pensar nos caminhos dos fins. Do transformar-se a perder-se de vista. Do deixar-se livre das amarras do ego.   

Tinha medo de deixar ir. E, quanto mais medo sentia, mais a morte rondava-lhe os olhos. Sim, era preciso deixar-se morrer. Tinha que aprender a gozar a morte, como quem se solta no gozo profundo da vida fecunda. Como quem se eleva em orgasmos que libertam o corpo. Elevou-se sozinha em prazer escondido. Tocou-se para experimentar a vida regenerada pela matéria morta. Morria.

Morria a morte que gerava vida em diferentes formas. Era preciso entregar-se ao desconhecido que abrigava nas células vivas. Ao desconhecido que era ela, e que a levava fatalmente ao fim de novos começos. A vida é cíclica? Pensou com curiosidade. Sentiu medo da resposta oca de voz racional. Sentiu medo por não saber quem era. Sabia apenas que a tontura circular a atravessava. E que ela morria no mesmo segundo em que inspirava profundamente o ar para dentro dos pulmões. 

Sim, a vida era morte. E a morte respirava o caminhar dos dias. O ego era uma ilusão que a confortava. Que a amortizava da dor pontuda de não pertencer ao conhecido. A dor bela do fluxo da vida. O ego era o companheiro no qual ela podia camuflar a falta de controle que tanto a desafiava.

Mas de novo vinha a morte - em novos tons e novas surpresas. E de novo sacudia-lhe as mãos agarradas ao pretenso controle de ser ela. Tremia, suava frio, pisava a vertigem do transmutar-se. Encolhia-se diante da perplexidade. Ela era nada. Era incógnita de vida e morte.

Suas pequenas mortes diárias.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Pietá


por: Kali
desenho: Ana Vasconcellos

Era o tempo dos milagres, das curas, do reconhecimento. Poderia viver assim por toda eternidade, desfrutando do gosto doce de saber usar os cristais interiores. Esqueceu, porém, que a grande missão estava no aprendizado. Não era o topo da montanha que fazia o alpinista. O troféu é a escalada.

Foi capturada pela força negra das entranhas. Chegou o tempo das estacadas na mão, a espinhante coroa de questionamentos, dos chicotes no corpo. Chegou o tempo de sangrar um líquido vermelho e dolorido, para sentir-se encarnada.

Foi preciso morrer para adentrar nos infernos. Foi preciso doer para compreender a humanidade. E no mergulho cego no abismo, perder-se parece inevitável. Tamanha solidão dos dias sem luz, dos quadros sem cores, da vida sem sentido no labirinto de espelhos.

Ela procurava como um inseto desesperado pelo brilho artificial. Esqueceu de olhar para a luz que tremeluzia dentro de si. Com rosto colado no espelho, exibindo deformada figura forjada pelo calor da ofegante respiração, ela fechou os olhos e deixou despencar no chão seu grande corpo de guerreira.

Encolheu-se buscando o calor de si mesma e encontrou o vento glacial de seus pensamentos. Sentiu o gerar no seu ventre. Algo que pulsava em um ritmo alucinante. Viu o mundo girar. Sim, estava na hora de parir. Tirou forças de onde não tinha, abraçou o vaso, afundou sua pesada cabeça. Sentiu o cheiro de fezes. Seu estômago revirou e ela despejou para fora aquilo que não lhe pertencia. Fétido cheiro das entranhas doentes. Negro, com pedaços de alimentos impróprios, fatias de histórias não vividas, partes alheias.

Despencava no chão, encolhia-se, sentia o vento glacial e novamente mergulhava nos odores apodrecidos de si mesma. Ela pariu suas sombras mais obscuras e pensava estar sozinha.

Quando por fim derramou a última gota de suas negatividades, soltou-se no abismo pensando ser o fim. Esperou pela queda com os olhos apertados e sentiu o abraço pequeno e feminino de sua mãe. Abriu os olhos e permitiu-se morrer. Os olhos maternos não espelhavam dor, medo ou ressentimento. Era piedade que via. O amor incondicional que buscara por toda a vida. O olhar que lhe foi negado ao nascer, mas, que, por fim, lá estava estampado na partida.

Com as costelas expostas e massageadas, ela sentiu seu frágil coração. Frágil e forte, como ela mesmo o é. Doce e amarga, como ela mesmo se provou. Escura e clara, como ela mesma se descobriu.

Chegou o tempo de morrer no colo da mãe, com um sorriso leve de quem pode voltar para o pai. Na derradeira despedida, o amor pulsava, não mais para fora, agora para dentro, acarinhando as entranhas. Não mais tão estranhas agora.

E no toque de si mesma ela cindiu-se em luz e alcançou os céus.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

(um conto controvestido)


Por Ana

Certa vez contou-me o vestido a respeito de um corpo sobre o qual deslizava.
 Já havia habituado-se a seu odor de dias quentes e ao dançar inerente àquele andar sem  vento.
 Era um lilás algodoado, desprendido das próprias alças.
 Numa época em que nos seios, jaziam olhos da maldade(...)
 Nascera pano de roupa e rua, sem jamais fazer jus a uma vida que ousasse proclamar-se   mais nobre.
 Encontrara-se a certa altura esquecido entre usados e passados perdidos, mas aí então, desceu perene   sobre a pele daquela carne morna.
 Aquela carne de fogo...
 E ali tornou-se também pele.
 Pele de uma pele que era mulher.
 Sugava cada gota de suor das costas marcadas pela juventude recente.
 Sagraram laços para a eternidade.
 Duas peles.
 Um pano e uma mulher.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Abismos

Por Silvia Badim/Gaia
Imagem de Ana Vasconcellos


Lá estava ela, pairando sob o abismo.

Andava em volta de si mesma, olhando o imenso buraco aberto sob as crateras de sentir e de pensar. Abismo negro de profundidade não revelada. Rachava-se.

De um lado pisava o sentimento imenso, que sentia arrepiar-lhe as entranhas. Sentimento disforme, irradiador, que a devastava como a seca que comia o verde. Do outro lado, pisava a terra de seus esquemas racionais. Milhões de explicações teóricas sobre os sentires que lhe invadiam a alma, e escorregavam para todos aqueles que estavam ao seu redor. Conjunturas, quadros, rotas explicativas, sensatez. Sua mente fervilhava tentando encontrar racionalidades racionalizantes. Tentando amordaçar o sentir vivo que corroia certezas e traços que definira com tanto esmero.  

As suas estruturas pegaram fogo. E ela corria com baldes d água, atrapalhada pela pressa de preservar sua solidez. Quase desesperada diante das chamas, tentava salvar alguma coisa que permanecesse em pé. Esfregou os olhos, tentando enxergar o que restava sob o cinza chumbo da fumaça. Mas não reconhecia os vestígios sobreviventes. Estava permeada por olhos de abismo.  

Lá estava ela, um pé de cada lado, cindida sob o negro sem fundo. O fogo dilatava as crateras, aumentava seu diâmetro, esticando suas pernas ao limite. Pernas abertas por onde sangravam contradições. Sentia o limite dos paradoxos, a abertura em que vivia suas confusões mentais. Perdia o equilíbrio para as vertigens de se estar à beira de.

Quase rasgada, suas pernas doíam, imóveis em distância. Paralisadas, gélidas. Precisava doer. Alguma coisa precisava doer. Precisa sentir fisicamente o limite das pernas estiradas. A dor cortante de não conseguir fincar os dois pés no mesmo lado. Era tempo de revelar a dor escondida nos seus fragmentos entre abismos.

Quem era ela mesmo?

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Conversa de Kali e Gaia

por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

No início era o ruidoso fluir das veias. Um som em constante movimento. Ficou apertado, a expulsão, a força do fim da escuridão, o início da luz. Veio o verbo, os adjuntos adnominais, os olhares, o toque, o silêncio e a solidão. Fez-se o barro. Barro de estrelas cadentes. Anjos caídos em um mundo de fantasmas.

Foi-se o tempo das bolhas de sabão, dos sonhos, dos elefantes vermelhos, dos espíritos de asas. Chegou o tempo de escolher a forma para entrar, as algemas e bolas do pé,  tempos de dilacerar as partes para encolher-se a fim de representar um molde. Fujo, desinformo, fluidifico.
Olho no espelho. Sangrava. Pedaços vermelhos de mim caiam no vaso. Carmins, lindos, com cheiro de vida. Faço dos dilasceramentos das minhas entranhas meu batom, minha pintura de guerra, meu tratado de paz. E danço na sala vazia, me entrego e experimento sensações de estar desapegada de mim. Entro no fluxo do universo, no extase de ser EU.

Aceito o chamado e o destino de ser um portal de anjos. Sento na beira do rio e ouço as vozes das águas, o sussurro das árvores, o culto de encontro com a minha natureza feita dessa mesma essência. A entrega ao sagrado terreno em forma de nuvens, flores, animais, água, luz, terra, éter, vento, raios, trovões e tempestades. Tempo fechado, mar revirado, natureza brava. Apequena-nos diante da força maior. Destrói egos inflados. Como ser hipnotizada pelas nossas tempestades das estranhas entranhas.

Há algo, no entanto, que sempre permanece que mora dentro de nós. Barro das estrelas que balança com os ventos que sopram, queima nas febres da alma, giram nos redemoinhos de vento. Permanece lá, intacto, sagrado.

Piso no lodo do fundo do rio. Ele era eu de verdade. A lama entrando por entre os dedos, suportando toda a fluidez das minhas intensidades, se adaptando a pisada, fazendo a estranheza macia e gosmenta do caminhar. Mangues são fétidos por sua riqueza, lamas são ricas e nos lembram sujeira. Como tantas coisas que achamos serem sujas como o sangue lunar das entranhas. Aquela parte de nós que se sacrifica para o renascimento.

O sangue que nossos lábios derramam é a lama do mangue, sangue da terra. E por mais que tenhamos sido moldadas, amputadas, dilaceradas, chega a hora que a gente não sabe mais quem é. Achamos que somos as formas. Esquecemos que somos o barro. Até que a forma se vai. Dissolvemo-nos nas lágrimas. E viramos a lama que faz a caminhada macia, entrando entre os dedos sendo sangue da terra.

Tudo faz sentido afinal. Sentido de apenas ser. Sem formas e livres de amarras. A tocar o amor sem formas nem padrões, nem nada mais. Enquanto o mundo se toca para sentir, encontro o que toca o sentir. E fim.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

um conto.



Por Ana

Desde o começo sonhara com liberdade;
Costumava tropeçar sobre os próprios passos, posto que fossem sempre maiores que as pernas.
Era ainda uma menina;
Imaginara-se despertando sobre o colchão baixo, um chuveiro forte e boa comida na mesa.
Talvez fosse necessário, vez ou outra, trabalhar em algo que não lhe agradasse.
Sabia disso.
Pensava em si acompanhada de solidão, mas não se feria; eram uma e outra, velhas companheiras.
O pensamento era fácil enquanto não foi preciso sair do lugar.
Mudou-se de cidade;
uma. Duas. Três vezes.
Era como se o corpo fosse e a alma se perdesse.
E o corpo, amanheceu mulher.
Não havia mais os cabelos que fizeram reféns tantas mãos.
No espelho, um riso ao contrário.
Era a alma da menina virada ao avesso.

Febres fundantes

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

Ardeu em febre.

Os tempos recentes a dominaram pelo quente que emanava de seu interior. Um quente devastador, que a queimava com a mesma intensidade do sol de setembro na seca do oeste. Um quente que veio para dissipar o que sobrou teimoso. Torrar em nuvens cinzas alguma coisa secreta, que ela guardava com teimosia de apego. Seu ego alerta foi desmantelado pela força da natureza. Natureza que ela guardava em si, a misturar-se com a imensidão dos rios e ventos que cantavam a poeira vermelha por entre os dias. 

Ela se deitou sobre a terra, estirada imóvel como a pedra que lhe deitava vizinha. Queimou-se. Seu corpo sucumbiu à esfera de calor. Às profundezas quentes que lhe alteravam a consciência com tons e ruídos distintos. Ela era pulso, era vento soprando com voracidade, força disforme lançada como furacão. Vivia a sua tempestade de sol.

Em seus delírios febris ela lambia com sede a água do rio. Aproximava-se em mergulhos fundos, até perder o ar. Até tocar o lodo do fundo do rio. Lodo espesso e denso, que lhe adentrava os dedos a causar-lhe sensações de arrepios. Os arrepios da febre. Os arrepios de pisar a areia submersa, fixa embaixo dos seus tantos líquidos interiores, a suportar toda a impermanência de suas intensidades. 

Lodo matéria – prima. Podia senti-lo embaixo das cobertas durante a noite. O seu cheiro forte, a sua textura estranha, seu fermento de vida que junta tudo, todos os elementos, tudo o que já foi e o que ainda será. Matéria morta a gerar matéria viva. Abrigo de útero a impulsionar novas formas e novos respiros. Matéria de si própria.

Quando a febre cessou, ela respirou suave. Molhada pelo próprio suor, fertilizada pela própria tempestade interior. Plantou sementes na terra colhida. E elas hão de desabrochar com o chegar das chuvas.
Algum dia.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Soul

por Kali
Desenho de Ana Vasconcellos 


Eu sei, estou sumida. Perdi-me no pulso das minhas entranhas. Explodi em mil coágulos sanguinolentos, negros, putrefatos. Nasci feto morto, me fiz mãe de seios sem filho para amamentar.

Escondi-me na solidão dos dias para não expor minha ferida que pulsa no compasso da culpa, por não ser a vagina que pari, a força de vida que traz a luz. E ao amparar aquela que se desfacela, eu me parto em mil pedaços.

Sou como um vitral caleidoscópico espalhado no chão. Espeto e sangro quem por aqui caminha. Entro em carnes e latejo como um espinho em um pequeno pé de menino.

Pulso, com a força de quem atua sem filtros, tentando chamar atenção da mãe que me vira as costas. Choro, sozinha, sentindo o lampejo da dor da orelha puxada, que faz o coração sangrar na dor de ser desprezado.
E quando ela me nega o amor, eu desabo. E no seu colo pequeno, me encontro em meu espaço. A mãe que não me ama, me vê, como soul. Um pouco grande. Um pouco pequena. Precisando de colo e alento, num silêncio de quem ouve o que sempre quis ouvir. De saber que estou cuidada, mesmo quando quero me esconder. Que o amor as vezes é espinho e sangue. Outras abraços. E tudo está certo.
Assim vou juntando os cacos e girando o caleidoscópio, buscando a luz que sempre brilhou, para que eu me veja, como soul.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Paradoxos fálicos

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


Ouviu dizer que ela era uma mulher fálica.

Ouviu e refletiu a respeito do falo que impostoramente carregava por entre os anos. Falo emprestado de algum lugar do passado, que se acoplou ao meio de suas pernas como parte membro. Que lhe acompanhava a trajetória desde seus primeiros passos sozinha pelo mundo.

Quando saiu da casa de domínio materno, decidiu não mais precisar. Decidiu entrar na briga, de igual para igual, bater no peito como mulher dona de si. Mulher que gritava a situação que se apresentasse, boa ou ruim, de sorrisos ou dores. Mulher de equivalências que não se intimidam. Que não se acovardam diante das brutalidades. Que não confiam em abrigos fáceis. 

Ela preferia sair em disparada. Colocar as luvas e seguir em frente, cuidando para não deixar a maquiagem borrar de vermelho sangue. Camuflou as lágrimas. Os ciclos viscerais de feminilidade não lhe dominavam. Ela os entupia com artificialidades do mundo moderno - bendita ciência de hormônios e de pretenso controle. Guardou sua feminilidade cor-de-rosa para qualquer hora de depois. Estufou o peito com o falo ereto. Foi. 

E, num susto, viu um filho homem brotar de dentro de si. A força da natureza é uma incógnita que não se decifra. Tampouco se controla. Apenas se sente, devastadoramente. Curvou-se. Um pequeno falo saiu de seu ventre, pela força de suas pernas e braços, a pedir-lhe colo e a devorar-lhe seios – em busca do alimento vital que deles jorrava como um rio que corre. O rio da vida. E neste fluxo acalentou o pequeno masculino com o mais profundo amor que se permitiu tocar. Um amor para além de si, que tomou o mundo com personalidade própria.

Pariu. Viu seu corpo mudar sem trégua. Sentiu as profundezas da natureza feminina. Sentiu-se viva e próspera. Mulher. Quase frágil diante dos assombros que vivenciava sem domínio da razão.  

Mas o falo continuava ereto.  A lembrar-lhe dos espinhos na planta do pé. A cuidar-lhe das fragilidades que ela, sem querer, soltou ao vento. O masculino ainda causava-lhe sensações de afugentamento. E ela não sabia por quê. Sabia apenas que não conseguia arrancar o falo emprestado. Ele estava preso a pele, a misturar-se com as suas estranhezas de ser mulher.  Não sabia se deixar cuidar, no momento em que mais precisava de cuidado. Não sabia controlar o feminino que pulsava de dentro de si. Perdia-se em atos bruscos, em brigas inventadas, no próprio mistério de ser ela.

Rompeu em paradoxos. Masculino- feminino. Tudo era ela.

Pensou de novo: tudo era de fato muito estranho.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

pequeno poema biográfico

 por Ana

Nunca antes fora menina
entre criança e mulher não houve hiato;
somente força torneando os seios de mãe
a vulva larga, quente, desenhada à prole vindoura.
Seu sangue jamais fora escasso
jorrava de dentro feito queda d´água
líquido e sólido em vermelho fechado
e ela, em seu silêncio mais íntimo
gostava.
Nunca antes fora menina
talvez agora seu corpo rogue um pouco
a inocência desconhecida.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Estranhezas

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

Emergiram estranhos sentimentos quando, enfim, abriu as comportas. Ela recolheu o sangue, e as tristezas tomaram-lhe os braços por dias e dias. O choro junto à garganta. Recolhido próximo, prestes a saltar-lhe pelas amídalas. Águas fluidas, que a lembravam da fluidez da própria vida.

Era um tempo duro. Seco. De esperanças em preto-carvão. Tempo de se viver no escuro, corrompida de certezas. O acaso havia lhe pregado peças de desconcerto. Assombros, dilaceramentos de limites, paixões que voavam para longe. Estranhezas de intensidades. Desconfortos de encantamentos. Estava rendida em falta de controle. Queria agarra-se no que sabia certo, mas os galhos eram feitos de limo. Verdes escorregadios. Machucavam-lhe as mãos com aspereza liquida.  

Estava exposta, havia encontrado femininos que lhe faziam sentido. Pela primeira vez em tempo consciente, acessou um feminino que não lhe afugentava de si mesma. Sentia com sorrisos as entranhas e úteros que geravam vida-vivida. Que lançavam ao ar a força de se gerar amor de cumplicidades. De cuidados e compreensões. Sentiu amor pelo igual, sem reservas de sentimentos.

Abriu os poros. A experiência do feminino podia ser sentida na pele. E ela não tinha mais medo. O feminino era sublime. Sublimou-se. Tocou em si mesma, mulher rosa de fragilidades escondidas. Fragilidades que ousaram respirar o dia lá fora, desavergonhadas. Eram tão suas! Tão feitas de sutilezas incomunicáveis. E reluziam, imensas, no dia de luz branca a ofuscar-lhe a visão.

A tristeza pungente fazia-se alegre quando tocava o ar. Alegre-triste. Em paradoxos companheiros. Ela sentia o ímpeto de sair correndo. De desbravar o cerrado em galopes, de fugir consigo para bem longe. Acasalar-se livremente para esquecer a dor. Perder-se em rostos sem importância. Esconder-se em tocas, hibernar até mudar a estação. Até chegarem as chuvas que lavariam os vestígios. Que trariam o alento da umidade. Que enxaguariam por completo a angustia da transição. 

Mas só lhe restava esperar pela chuva em céu aberto. Chuva que chegaria sem hora marcada. Sem controle de tempo. Domou a metade cavalo. Era tempo de fincar-se até o fim dos ciclos. De frente àquilo que lhe despertava a voracidade do afugentamento. Fincou-se no chão da casa da montanha. Eram ela e os sentimentos sem-nome. Os desafios da horizontalidade. Os deslumbramentos que lhe rasgavam em dualidades. As questões do amor. As questões da dor. As questões que jamais saberia explicar com voz de razão. As questões de menina de pai e mãe.

O inconsciente.

do primeiro óbito.

 por Ana

Vinte e um anos
mais nada.
Não ficou dor, nem mágoa
tampouco sorriso.
A cara desexpressada estampada no papel.
Não houve bilhete, posto que antes as palavras vinham em excesso.
Eu havia entendido tudo.
Naquela época, considerava-me homem de certa sabedoria.
Hoje, não sei.
A menina partiu sem esperar.
Não quis festa
despedida
não quis adeus.
O dia seguinte era roupa branca despencada do edifício alto.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

do ofício.

por Ana

é nanquin correndo em minhas veias
negro líquido escorrendo pelas pernas
enquanto
go...zo...