terça-feira, 31 de agosto de 2010

Esfacelamento


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcelos 

De repente, esfacelou-se. A inevitável queda no vazio do regresso. 

Ao tentar conter a enxurrada que tentava transpor-lhe a represa, foi levada pela força da água. Estava cansada, sentia suas pernas leves, e formigavam-lhe os passos. Ficou em estado de espanto. Queria fugir, tapar os buracos que permeavam a velha barreira, mas as pernas respondiam lentas. Tentou evitar que a correnteza chegasse para inundar-lhe o corpo. Mas quanto mais se mexia, atrapalhada, mais rápido sentia a água aproximar-se do limite. Os pés bambos tropeçaram, e os buracos jorraram a água represada. Toda a vazão por pequenos buracos que ela deixara descuidados. Pela inércia do corpo que não mais lhe respondia à razão.

Inundou-se, até perder o ar. Até enxergar-se submersa em água salgada. Perdeu a consciência para as profundezas. Da água fizeram-se lágrimas. Fizeram-se incógnitas palpáveis. Tristezas. Muitas delas, sem rosto e sem nome, sem qualquer vestígio de identidade. Tristezas que ela, por fim, reconheceu como suas.

Estava sem reflexos. Ainda imersa em oceano silencioso. Levada pelo curso das águas, ao sabor dos ventos e da rota da maré. Tocou a areia desconhecida, sem perceber que da água fez-se chão. Pariu as tristezas, que desceram ásperas de seu ventre para o meio das pernas. Reviraram-lhe o estômago em náuseas, correram-lhe o corpo em contrações até encontrarem a vagina fechada. Forçaram a passagem em sangue, até respirarem pelos poros abertos.

Sentia-se tonta. Sangrava, em grossas placas vermelhas. A sensação de desmaio rondava-lhe os olhos, e ela perdia-se de si mesma. Esvaia-se no ar. Não conseguia achar retorno para a realidade que conhecera até então. A realidade desfigurou-se. E ela evaporava-se no ar seco, em gotas de suor. Suava frio. As mãos geladas tocavam a vagina, o sangue, o que parira em gritos surdos.   

Resgatou alguma fé dispersa por entre os dedos. E pediu, quase sem querer, em preces africanas, algo que lhe centrasse nela mesma. Que lhe iluminasse o caminho com intenção de cura, e estancasse o sangue quente. Lutou para retomar a consciência de quem era, debatendo-se em medo e vontade de seguir por ela própria. Não havia nada ao redor. Apenas ela, e todo o líquido que escorrera de seu corpo. As tristezas e o sangue, a pele arrepiada, os cabelos lavados de água salgada.  As costas rachadas na areia, a solidão que pairava em coração.  O vazio da barriga sem feto.

E, no meio das pernas, olhou o que saiu de dentro. Lá estavam as tristezas, estiradas no chão, embriagadas de sangue. Eram amargas, e duras em espeto. E eram suas. Acalentou-as junto aos seios maternos. O cordão pulsava, e ela ouvia os sons que emanavam de dentro. Soube que muitas ainda haveriam de chegar, pela mesma passagem aberta. Pelos mesmos poros dilacerados e buracos descuidados. Fecundadas pela água que rompeu as barreiras. 

Já era hora de pegá-las nos braços. E cair, sem pressa de levantar. 

sábado, 28 de agosto de 2010

Habitante do Quarto Misterioso


 
Por Kali
Desenho de Ana Vasconcellos

Faz tempo, muito tempo que a aprisionei nos labirintos da minha psique. Ela sempre fora demasiadamente descontrolada com sua boca sedenta e seu cheiro de sexo. Prendi sim, tinha medo. Um medo de me prender, de ser conduzida por Kali nas armadilhas do imponderável. Ele gritava, gemia. Por vezes fui até seu pequeno quarto pedir para que me cantasse canções para eu me inspirar. Mas sua voz, doçura e força me seduziam a tal ponto que eu sentia vontade de soltá-la para ver o que ia dar. Mas tinha medo. Um medo de que ela me matasse, comesse minha carne racional e eu vivesse em seu mundo surreal.


Algumas vezes entrei no quarto com ela, tomando todo cuidado para que não fugisse ou pudesse cometer alguma atrocidade com minha vida controlada. Às vezes ela era uma menina mimada que fazia birra e dava vontade de dar os seios que ela nunca bebeu para que pudesse sentir o amor que lhe faltava.

Noutras era tão sedutora com suas formas avolumadas, seus gestos sem pudor que despertava vontade de consumi-la em cada pequeno detalhe celular.

Mas sempre, Kali, causara-me medo. Foi um dia, há muito tempo que eu a libertei. Sem perceber peguei sua roupa e vesti e ela me possuiu. Fechei-me no banheiro com medo daquilo que eu via: eu era mulher. Eu era ela, com aquela meia arrastão, as pernas firmes e grossas, o penacho de puta francesa na cabeça. Eu era ela e nunca percebi. Escondia-me em ações e vestimentas infantis. Mas eu era ela, indubitavelmente ela.

Lá fora alguém gritava:

- Vem, só falta você.

Mas eu me procurava naquela fantasia e não me encontrava. Quando entrei sendo ela naquela sala, que tantas vezes me escondi, todos me olharam como se finalmente eu fosse eu. Era irresistível não perceber a fêmea que eu tentava aprisionar.

Fui convidada a ir a frente e rebolar. Mostrar minhas curvas. Senti medo de soltá-la daquela forma. O eu faria com seu desejo de devorar almas e carnes humanas? O que faria com sua fúria de ter sido aprisionada por tantas décadas?

E antes que pudesse declinar a ordem, ela estava lá, rebolando para lua, com suas formas femininas insanas. E ela delirava ao ver o desejo pulsante nos olhos de homens e mulheres. Ela rebolava no silêncio profano. Ela se esfregava em si mesma, se tocando, pela primeira vez, sem controle, sem razão.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Sensibilidade de entranhas



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcelos

Neste momento ela não se deixava tocar. As vivências e horizontalidades a tomavam de assombros. O sexo era exagero, era invasão desmedida. Era descompasso. Seu momento era só seu. Estava incomunicável, perdida na própria carne. Seu corpo rosa, plácido e quente. Sozinho no mundo, à deriva dos acontecimentos. Deitado nu sobre a cama vazia. Pulsava no ar com bocas de travessão, com limites de palavras não ditas. Com reações físicas estupefatas.

Sentiu medo. Medo dito e consentido. Guardou-se em si como concha-mãe. Era preciso decantar o medo no solo das profundezas, entender o que o corpo queria dizer com sua sensibilidade de entranhas. Ouvir os arrepios surdos que lhe corriam os pêlos. Dialogar com a repulsa de penetrar-lhe o feminino, de sentir outro corpo dentro do seu. Era momento de ouvir o sangue murmurar os desatinos guardados no líquido interior. Misturar-se nas batidas aceleradas da tontura de desvarios. Internalizou-se – com a confusão de estar afogada em si.

Perdeu-se. Já não conseguia domar os instintos, o corpo vencia em agilidade. Domava-lhe a mente em gestos de impulso. Pernas que se cruzavam em sonhos, braços que seguravam os seios, febre que lhe tomava às madrugadas frias. Suava embaixo das cobertas, em palpitações grotescas. Sentia a própria pele, tocava o que se escondia embaixo do umbigo. Descobria e redescobria seus órgãos de fazer-se mulher.

O sexo cutucava-lhe as feridas. Mexia por dentro em memórias de útero alfinetado por algo sem cor. Sem forma e sem presença. Pulsava em paradoxos. O sexo era divino. Sempre aspirou à divindade de estar com alguém em conexão sagrada. Em estado alterado de consciência de amor e gozo profundo. Penetrar o espaço impenetrável entre duas pessoas. E, por vezes, tocou esse espaço consentido pelo divino. Encontrou-se, misturou-se, liquidou-se no profano e no sagrado. E viu o espaço escorrer-lhe pelos dedos atrapalhados de intensidades difusas.

Confundiu-se. O que era o sexo, afinal? Em que consistia esse desejo por coisas estranhas, quase vindas de outros planetas? A exposição desmedida do eu nu? O ser selvagem, bicho humano de ruídos indizíveis? O sentir irracional de atos impensáveis?

Latejou em contradições. Enormidades de perguntas que não lhe calavam a ânsia de não-sei-o-quê.

O falo lhe procurava com voracidade masculina. Pontudo, dominante, puro de selvagerias declaradas. E ela o olhava de longe, como coisa desencaixada - que procurava desmedidamente o seu encaixe para poder elevar-se em prazer encontrado.

Tudo era de fato muito estranho. Tudo era desejo. E ela sabia dos seus desejos quase não pertencentes ao espaço-tempo em que respirava as suas necessidades de mulher. Eram tantos, e tão leves, que preferia guardar-se. Sim, ela era estranha.

Não conseguia atender ao falo. Estava arredia como bicho ferido nas quatro patas. Algo secreto perturbava-lhe o sono. Algo de dor, algo de amor, algo de impronunciável. De profunda individualidade de solidão. Não saberia dizer o quê. Sabia apenas que se arrepiava como gato pronto para a briga.

Lembrou-se dos moralismos da infância, das falas das avós, das moças virgens reverenciadas. Da infelicidade de homem e mulher que ela acompanhava com os olhos de ingenuidade. Dos gritos de falta de amor, de falta de sexo sagrado. Dos medos vultuosos da mãe, que descobria com espanto a filha-menina com anseios de misturar-se a outros corpos. Do silêncio branco do pai.

Sentiu por dentro a lembrança de sua libido adolescente, que despontava correndo pelos corredores das casas em beijos roubados e toques abafados. Que queria dissipar o vigor do novo feminino que saltava-lhe os orifícios. Lembrou-se das trocas improváveis no fundo do quintal. O sabor era doce de menina moça. Sabor de escondido. As pessoas grandes sempre lhe respondiam com falas prontas de não. Falavam baixo como coisa quase feia. O sexo era para depois, muito depois, um depois de quase nunca. Um depois dito por vozes de temor e padrões engessados ao permitido.

Voltou ao tempo de hoje onde conseguira romper algumas barreiras. Já era adulta, vigorosa e parida. Já conseguia saber-se além, mulher sem binômios, mulher de sentir livre, mulher entranhas. Mas não conseguia dar o passo em direção ao outro lado do rio. Ficava parada na margem, contemplando a enormidade das águas, a enormidade do sexo-mundo. Seus pés tocavam o gelado, sua alma corria solta pela mata ciliar. Mas ainda não havia fôlego para a travessia.

Suspirou. Um dia suas pernas estariam firmes, quem sabe.